quinta-feira, 6 de março de 2014

Introdução ao Estudo do Direito, de Tércio Sampaio Ferraz Jr. -Capítulo 01 - A universalidade do fenômeno jurídico

Introdução
Na antiguidade, a legislação enquanto trabalho do legislador não se confundia com o direito enquanto resultado da ação. Havia diferença entre lex e jus, eis que a lex condicionava o jus, e este era condicionado pela virtude do justo (Justiça).
Com a modernidade, passa a valer a figura do homo faber, e o direito se volta para a realização de fins, como a imposição de uma vontade sobre outra. O significado que deveria ser dado pela ação, pelo pensar, pela política, pelo agir conjunto, passa a ser dado por uma relação funcional de meios e fins.
O homo faber degrada o mundo, porque transforma o significado das coisas numa relação meio/fim, numa relação pragmática. Esvazia-se o conteúdo da decisão e transforma os fatos sociais, como o direito, em um fim em si mesmo. O homem deixou de ser um animal político para ser um animal construtor, e portanto apenas se relaciona bem com outras pessoas trocando produtos com elas. A troca de produtos, assim, torna-se a principal atividade política, e o Direito apenas mais um produto produzido pelo homem, e pelo qual o homem se mostra. O direito transmutou-se em um sistema neutro que atua sobre a realidade de forma a obter fins úteis e desejáveis. O que na antiguidade era ação, e na era moderna passou a ser trabalho produtor de normas, no mundo contemporâneo torna-se produto de labor, ou seja, objeto de consumo ou bem de consumo. E o homem que labora torna-se isolado do mundo, eis que sua produção independe do mundo em si, numa busca pela sua simples sobrevivência. Todos os homens, pela sua força produtiva e pelo seu consumo de bens, tornam-se simples meios, ou peças, dessa engrenagem.
De igual forma, o Direito torna-se mero instrumento de atuação, de controle, de planejamento, tornando-se a ciência jurídica um verdadeiro saber tecnológico. Deixa de assentar-se sobre a natureza, sobre o costume, sobre a razão, sobre a moral e passa reconhecidamente a basear-se na uniformidade da própria vida social, da vida social moderna, com sua imensa capacidade para a indiferença. Indiferença, inclusive, quanto às divergências de opinião, construindo-se uma ideia de tolerância passiva, que aceita todas as inconstâncias de um direito como produto, como se fosse a maior das virtudes.
Todavia, segundo o autor, essa forma compacta de direito instrumentalizado, uniformizado e generalizado sob a forma estatal de organização, é possível, venha a implodir, retornando as manifestações espontâneas e localizadas, típicas de um direito de muitas faces, peculiar aos diversos grupos e pessoas que o compõe. Assim, ter consciência dessa mecanização do direito não se perfaz um momento final, mas sim um ponto de partida e um convite a pensar o direito, como objeto de reflexão, e vivê-lo com prudência.

1 - A universalidade do fenômeno jurídico
O Direito apresenta-se na sociedade como um objeto de várias faces, ora servindo de consolo e fonte de guarida aos fracos e injustiçados, ora servindo como instrumento de dominação e controle, ante sua intricada tecnicidade. Essa aparente incongruência torna deveras tormentosa a redação de uma definição precisa do que seria o direito. Um dos caminhos a serem seguidos é, sem dúvida, o estudo das origens do nome direito em seus registros mais remotos, a exemplo da clássica dicotomia entre jus e derectum. Na antiguidade clássica, os símbolos relacionados ao direito variavam desde a deusa Dike, na Grécia, segurando a balança (sem o fiel ao meio) e a espada, com os olhos bem abertos, a deusa Iustitia, em Roma, que segurava sua balança (dotada do fiel) com as duas mãos, de pé e com os olhos vendados, declarando o direito quando o fiel estivesse completamente vertical, ou seja, direito, rectum, de+rectum. As diferenças simbólicas, por mais sutis que sejam, indicam os traços característicos desses dois povos, com os gregos traçando uma concepção mais abstrata, especulativa e generalizadora, com pouco apelo prático, e os romanos dando mais ênfase juntamente ao oposto, à prática, sem a elaboração de teorias abstratas sobre o direito. Como a palavra derectum continha um apelo visual mais notório, em razão de significar a retidão dos pratos da balança, esta era mais utilizada nos texto mais populares, enquanto que a palavra jus era restrita aos textos mais eruditos. A partir do século VI, no entanto, houve uma virada e a palavra derectum passou a significar o ordenamento jurídico ou uma norma jurídica em geral, e a palavra jus carregou o significado daquilo que é consagrado pela justiça, em termos de virtude moral. No Brasil, a expressão direito albergou ambos os significados, tornando o problema da definição desse verbete dos mais difíceis para o teórico, mas fundamental para a correta abstração do objeto em estudo.

Tem-se a crença de que a língua é um instrumento que designa a realidade, por meio da qual poderemos abstrair conceitos sobre a essência das coisas. Os autores jurídicos, em sua maioria conservadores, admitem a possibilidade de com uma palavra poder significar os conceitos e ideias relacionadas ao direito, mas a dificuldade é notória e se apresenta inclusive nos usos mais corriqueiros da palavra direito, como ciência do direito, meu direito foi violado, o direito brasileiro não permite a pena de morte, direito civil, etc. Do grande leque de realidade que uma definição pode abarcar surge seu maior problema, eis que ou são demasiado genéricas e abstratas, imprestáveis para traçar-lhe os limites, ou são muito circunstanciadas, o que faz com que percam sua pretendida universalidade. A filosofia analítica, por sua vez, apresenta uma concepção convencionalista da língua, que busca definir os usos corriqueiros dos conceitos, ao invés de buscar a natureza ou essência de alguma coisa, pois esse tipo de questionamento não teria sentido. Para os convencionalistas, por outro lado, só há um dado irrecusável, o de que os homens se comunicam, quer queiram quer não, posto que ao comunicar que não se comunica o homem já estará se comunicando. Em se tratando do termo direito, ele comporta várias significações e usos sintáticos, pelo que se pode dizer que é um termo denotativa e conotativamente impreciso, caracterizado pela ambiguidade e vagueza semânticas. É impossível no uso comum enunciar todos os casos em que a palavra pode ser usada, daí a sua natural ambiguidade. Desse modo, qualquer definição para o vocábulo direito seria considerada persuasiva, ante a forte carga emotiva que a palavra carrega.

Assim, se faz necessário redefinir o termo direito, a fim de melhor adequá-lo aos propósitos de um manual de introdução ao seu estudo. Tal intento, contudo, esbarra numa circunstância inerente à ciência jurídica, que tem seu objeto de estudo como um resultado de sua própria prática interpretativa, e sua análise depende da própria aplicação de sua teoria. A ciência jurídica não apenas informa, mas também conforma o fenômeno que estuda, faz parte dele. E ela faz isso sob diferentes enfoques, a exemplo do enfoque zetético e do enfoque dogmático. Um dos enfoques se preocupa com o problema da ação, de como agir, pois parte de uma solução já dada. O outro, por sua vez, está preocupado com um problema especulativo, de questionamento global e progressivamente infinito de premissas. A palavra zetética vem de zetein, que significa perquirir; enquanto que dogmática vem de dokein, que significa ensinar, doutrinar. Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são infinitas, e estão relacionadas a busca sobre o que é o ser. Questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e são finitas, e estão relacionadas a busca sobre como deve ser algo. No enfoque zetético as premissas podem ser trocadas, caso se mostrem inservíveis, o que não ocorre no enfoque dogmático, pois se as premissas não se adaptam aos problemas, estes são vistos como "pseudoproblemas" e, assim, descartados, e não há a possibilidade de deixar soluções em suspenso. Com relação aos pontos de partida, uma investigação zetética parte de evidências e deixa de questionar certos enunciados porque os admite como verificáveis e comprováveis, já a investigação dogmática não questiona suas premissas, porque elas foram estabelecidas como inquestionáveis. A evidência está relacionada a uma verdade, e a dogmática está relacionada a uma dúvida que, não podendo ser substituída por uma evidência, exige uma decisão. O dogma impõe uma certeza sobre algo que permanece duvidoso.

O direito penetra em diversos ramos do conhecimento, e alguns deles propõe um enfoque necessariamente zetético. São disciplinas como sociologia, antropologia, psicologia e história, e todas admitem no âmbito de suas preocupações um espaço para o fenômeno jurídico. Seu caráter zetético advém da abertura constante para o questionamento dos objetos em todas as direções (questões infinitas). A zetética analítica pura ocupa-se com os pressupostos últimos e condicionantes bem como com a crítica dos fundamentos formais e materiais do fenômeno jurídico e de seu conhecimento. A zetética analítica aplicada ocupa-se com a instrumentalidade dos pressupostos últimos e condicionantes do fenômeno jurídico e seu conhecimento, quer nos aspectos formais, quer nos materiais. A zetética empírica pura, por sua vez, ocupa-se do direito enquanto regularidades de comportamento efetivo, enquanto atitudes e expectativas generalizadas que permitam explicar os diferentes fenômenos sociais. E, por fim, temos a zetética empírica aplicada, pela qual o teórico ocupa-se com direito como um instrumento que atua socialmente dentro de certas condições sociais. Assim, a zetética jurídica corresponde às disciplinas que, tendo por objeto não apenas o direito, podem, entretanto, tomá-lo como um de seus objetos precípuos.

Por outro lado, uma disciplina pode ser definida como dogmática quando considera certas premissas arbitrárias (no sentido de que são simples resultados de uma decisão) como vinculantes para o estudo. Trata, portanto, de questões finitas, que são regidas pelo princípio da inegabilidade dos pontos de partida, construído por Niklas Luhmann. Em uma primeira análise, pode-se imaginar que a expressão "dogmática" imporia uma restrição demasiada ao trabalho do jurista teórico, que, presumidamente, estaria tolhido pelos pressupostos delimitadores. Em verdade, é certo que o direito vivenciado nas universidades vem sofrendo um crescente processo de dogmatização, pelo qual se dá pouca importância aos seus aspectos menos técnicos. Mas tal posicionamento pode ser justificado se considerarmos que existe uma dupla abstração no processo de conhecimento e aplicação de uma norma jurídica, uma para definir qual norma aplicar ao caso e outra para definir quais as regras de interpretação válidas para abstrair o conteúdo da norna ora aplicada. Caso essas abstrações não fixem pontos de partidas estanques, corre-se o risco de distanciar-se progressivamente da realidade que se pretende normatizar. Por outro lado, os próprios pontos de partida, fixados na ciência dogmática, podem e devem ser interpretados de forma crítica. Assim, o jurista, ao se deparar com um dogma, deverá dar a ele interpretação consoante a utilidade que pretende àquela norma. Esse processo de interpretação, por si só, já liberta o jurista para exercer seu ofício em um nível menos vinculado. O saber dogmático retoma assim a análise das incertezas que justificaram a própria criação dos dogmas, ampliando-a, mas de modo controlado. O controle se refere ao fato de que não é admitida qualquer interpretação para uma norma jurídica, mas apenas aquela interpretação que resultam de uma argumentação conforme aos padrões dogmáticos. O livro seguirá analisando o direito como objeto dogmático, porém com um enfoque notadamente zetético de como a dogmática conhece, interpreta e aplica o direito, mostrando-lhe as limitações.

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