segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A doutrina do abuso de direitos e a concretização de direitos sociais

por Andrei Cesário de Lima Albuquerque

Este post é inspirado na leitura recente que fiz do livro "The general exception clauses of the TRIPS agreement: Promoting Sustainable Development", de Edson Rodrigues Beas Júnior. Somente após ler a versão em inglês é que descobri que a obra foi traduzida e está disponível no mercado brasileiro com o título "Acesso ao conhecimento e os testes dos três passos dos direitos de autor, de marca, de patente e de desenho industrial", publicado pela editora Singular.
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No geral, o livro discute como o teste dos três passos, previstos no acordo TRIPS (Trade-related aspects of intellectual property rights - Aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio), pode ser utilizado para decidir sobre a legalidade das limitações não-escritas sobre os direitos de propriedade intelectual, no sentido de viabilizar um modelo sustentável de desenvolvimento (principalmente nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento), bem como para concretizar direitos humanos.
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Nesse sentido, podemos ler o livro sob, pelo menos, duas perspectivas: uma prática e outra teórica. Pela perspectiva prática, os profissionais do direito que lidam com essas questões polêmicas da propriedade intelectual têm neste livro um importante repositório dos debates que cercaram os casos mais emblemáticos e interessantes sobre o tema, bem como um guia argumentativo para os inúmeros casos difíceis que certamente ainda virão. Já do ponto de vista teórico, a obra reúne os fundamentos dogmáticos para técnicas interpretativas/argumentativas e para doutrinas que podem ser a base de um leque muito maior de demandas relacionadas aos direitos humanos, tanto individuais e coletivos, quanto sociais.
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Aqui, trataremos da doutrina do abuso de direitos, trabalhada pelo autor, e de como ela pode ser utilizada para reconhecer violações de direitos trabalhistas (direitos sociais) e para fundamentar pleitos e decisões no sentido de coibi-las.
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A principal característica de uma situação de abuso de direito é a observância das formalidades legais, ou seja, formalmente, na maioria dos casos, o que se tem é um ato/negócio jurídico lícito.
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O fundamento normativo para a ilicitude do abuso de direitos pode ser primeiramente encontrado no art. 32 (2), da Convenção Interamericana de Direitos Humanos: "Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática". O nosso Código Civil também dispõe: "Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."
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A racionalidade por trás desse conteúdo normativo é que, primeiramente, não há direitos absolutos. Além disso, todos os direitos foram criados com uma finalidade específica e, no geral, todos eles pretendem proporcionar ganhos sociais, mesmo que, em um primeiro momento, o beneficiário aparente seja um indivíduo em particular. Quando essa finalidade específica é desvirtuada, tem-se o abuso do direito.
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Como bem aponta o autor, essa doutrina é especialmente útil para estabelecer os limites de um direito, cujos contornos não são especificados com precisão, mas que o seu exercício pode causar danos a terceiros ou mesmo afetar a realização de outros direitos. Pensando no direito internacional e nas regras que regem o comércio entre os povo, ele indica também dois requisitos para caracterizar um abuso de direito: 1 - o exercício de um direito em detrimento da sua função social; e 2 - a existência de danos a terceiros, ante a não realização da função social do direito em questão. Note-se que o nosso código civil sequer exige o dano como elemento caracterizador do abuso de direito.
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Apresentadas essas ideias, nossa proposta aqui é relacionar o abuso de direito com o exercício do jus variandi patronal, nas relações de emprego. Não há dúvidas de que quem contrata tem o direito de indicar o cargo e definir as funções a serem desempenhadas pelo trabalhador ao longo do pacto. Para as profissões regulamentadas, o exercício desse direito já sofre alguma limitação, pois a própria lei indica as atribuições dessas classes. O problema surge com as funções mais gerais, para as quais não se exige formação específica, e o patrão poderá exercer o seu direito de direção com maior amplitude. E a nossa experiência prática vem mostrando que, com frequência, os empregadores estão demandando de seus empregados muito além do que seria razoável.
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Nesses casos, o trabalhador pode pleitear um plus salarial, decorrente do acúmulo de funções que extrapolam irrazoavelmente ao que fora inicialmente pactuado, mesmo que o cumprimento das tarefas se dê sem acréscimo da jornada de trabalho. Mas como fundamentar um pedido como esse?
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Sem dúvida, estamos diante de um caso de abuso de direito por parte do empregador. Utilizando os requisitos apresentados no livro, temos que a conduta patronal não observa a função social do trabalho, cujo parâmetro é a ideia de trabalho digno. Ora, se uma pessoa resolve autonomamente, no exercício da sua dignidade, aceitar um posto de trabalho, ela faz isso porque precisa, mas também porque essa será a forma dela contribuir com o desenvolvimento do lugar onde ela vive. Ao desvirtuar desarrazoadamente o plexo inicial de funções, o empregador certamente estará privando o empregado de exercer suas opções de vida, e, em alguns casos, colocando a própria existência em risco, nos casos em que a função extra demanda uma experiência e uma destreza que o trabalhador não tem.
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Do Código Civil, temos que também é abuso de direito a extrapolação dos seus fins econômicos. O Estado autoriza o contrato de trabalho para que as pessoas, por seus próprios esforços, mas operando o capital e os insumos de outrem, possam autonomamente produzir riqueza para si e para a economia como um todo. Daí, a busca do pleno emprego ser um norte de muitos governos capitalistas ao redor do mundo. Quando um empregador, ao contrário, opta por submeter um único empregado ao desempenho de funções para as quais deveria contratar dois ou três funcionários ele certamente está burlando as expectativas econômicas nele depositadas pelo governo, por seus concorrentes (dumping social), e pela sociedade como um todo.
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A reprovabilidade dessa conduta vem sob a forma de sentença condenatória a obrigação de pagar ao trabalhador um percentual de seu salário base, durante o período em que restou comprovada a acumulação de funções.
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Em resumo, mesmo no direito do trabalho, em que o conteúdo do contrato de emprego é amplamente preenchido pela lei, a doutrina do abuso de direito apresenta-se como um importante recurso dogmático para resgatar a justiça em alguns muitos casos concretos, especialmente em tempos de crise econômica.
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