terça-feira, 13 de outubro de 2015

A desumanização do humano e o extermínio de jovens negros no Brasil

O nosso país matou, em 2012, mais de 56.314 pessoas. Dessas, segundo o levantamento feito pela organização Mapa da Violência, 30.072 são jovens, sendo que a proporção entre negros e brancos, nessa amostra, é de 132,3%, ou seja, para cada branco vítima de homicídio, morreram 2,3 negros. A série histórica mostra que essa proporção só aumenta: em 2002 era de 65,4%, em 2006 de 90,8%, chegando aos 132,3%, em 2012.
Diga-se ainda que, por se tratar de uma média nacional, esse dado esconde terríveis índices locais, como na Paraíba, onde para cada branco assassinado, morrem 19 negros, e em Alagoas, onde a proporção é de 1 para 18. Coincidência?
Um dos nossos propósitos aqui na Universidade é fazer uma leitura crítica da realidade, analisando os fatos com a ajuda dos conceitos aprendidos nas diversas disciplinas. Dessa análise resultam conclusões muitas vezes não percebidas pelo senso comum, mas que são extremamente úteis para desvelar situações graves e, se for este o propósito, apontar possíveis soluções e caminhos a serem trilhados. Percebem como nosso papel aqui é importante?
Nesse sentido, como podemos interpretar esses dados sobre o número e a proporção de homicídios entre jovens negros e brancos, à luz da doutrina dos Direitos Humanos? Uma análise histórica poderia nos mostra a escravidão dos negros e seus desdobramentos nos dias atuais como uma possível explicação para tais disparidades; uma análise socioeconômica iria tentar associar as mortes com o maior nível de pobreza da população negra; mas o que nos diria sobre isso a teoria dos Direitos Humanos?
O diplomata Lindgren Alves pode nos ajudar a entender melhor isso. Em sua obra "Os direitos humanos na pós-modernidade", ele trabalha muito bem o fenômeno da "desumanização do humano", e essa pode ser a chave para entendermos porque morrem tantos jovens negros no Brasil.
Como se pode notar, ao invés de se buscar alternativas construtivas para integrar o jovem negro na sociedade, o Brasil está simplesmente assassinando os indivíduos desse segmento social que, por um motivo ou outro, não lograram êxito em se inserir na roda econômica, seja frequentando uma universidade, seja pela ocupação de um posto formal de trabalho.
Trata-se, em verdade, de um verdadeiro genocídio, o qual, acreditamos, pode ser explicado a partir do conceito de desumanização do humano proposto por Lindgren Alves. Temos dois fortes indícios sobre isso: (1) Infelizmente, ainda paira no imaginário do povo brasileiro a imagem do negro escravizado e utilizado como mera força motriz. Tal figura é construída, inclusive, pelos livros de história utilizados pelas nossas crianças, os quais tratam a escravidão como uma questão econômica e não de violação de direitos humanos. Assim, se perpetua a imagem do negro como peça de uma engrenagem, que, se inservível para o paradigma capitalista vigente atualmente no Brasil, deve ser prontamente descartada. Desde pequenos somos acostumados a ver o negro apenas como essa engrenagem, e nunca como operador da máquina. (2) O tempo que a mídia dedica aos casos envolvendo o homicídio de pessoas brancas e ricas é muito maior do que o de jovens negros e pobres. Isso obviamente causa uma comoção muito maior, gerando a (falsa) sensação de que a morte de um branco e rico é muito mais sentida do que a de um jovem negro e pobre. Outro efeito deletério dessa maior exposição da mídia é a pressa do poder público em dar uma resposta ao caso. Quem não lembra do caso Nardoni, do caso Mércia Nakashima, do caso Von Richthofen, e tantos outros? mas quem lembra de algum caso de homicídio envolvendo um jovem, negro e pobre como vítima?
Esses indícios, e tantos outros, sugerem, na nossa opinião, que está havendo um processo de "desumanização ideológica", fazendo uso da expressão cunhada por Alves, do segmento da sociedade representado pelos jovens, negros e pobres. Esse processo, se não notado logo e combatido de forma incisiva, pode levar a resultados catastróficos. Essa desumanização ideológica atravessou a história das sociedades ocidentais ao longo dos séculos chancelando os mais diversos atos de barbárie contra aqueles que, dada a conjuntura político-social de uma determinada época, não estavam albergados no "conceito oficial" de "ser humano". Utiliza-se, portanto, um artifício lógico-retórico, assentado em premissas falsas criadas pela estrutura dominante para alimentar um "senso comum", para esvaziar o conteúdo do conceito de ser humano até a medida que mais aprouver ao agressor, o qual não incorrerá sequer em pecado, pois, segundo a nova calibração do seu "ser-humantímetro", ele estará lidando com um simples semovente, ou seja, um não humano, indigno de ser reconhecido como pessoa. Esse "ser-humantímetro" seria, portanto, uma espécie de régua, com a qual aqueles que controlam as superestruturas de uma determinada época utilizariam para "medir" o quão humano uma pessoa é, de acordo com o seu enquadramento, ou não, na estrutura físico-comportamental que se espera para aquela época/lugar.
Foi assim com os escravos e estrangeiros na Grécia, em que pese o ideal de justiça platônico e as regras de equidade aristotélicas, as quais valiam apenas para os gregos, sendo essa (ser grego) a calibração do "ser-humantímetro" deles. Foi assim também na escravização dos africanos e na perseguição das bruxas pela sociedade cristã europeia, em que pese as súplicas do Messias para que simplesmente amassem uns aos outros como a si mesmos. Nesse caso, o "ser-humantímetro" foi calibrado para não considerar humanos todo aquele que tivesse uma cor diferente do padrão europeu. Ainda é assim em muitos países muçulmanos, onde a clitoridectomia ainda é bastante difundida, em que pese alguns estados como o Egito já terem formalmente proibido a prática. E ainda o é no Brasil, onde os jovem negros que não se adequam ao modelo de realização pessoal prescrito pelo sistema são descartados, em que pese haver uma constituição cidadã, festejada e em pleno vigor, assegurando a todos igualdade de direitos e oportunidades sem distinção de cor e condição social. E esse é o processo de "desumanização ideológica" que nosso grupo enxergou na sociedade brasileira: silencioso, mas presente; pouco alardeado, mas recorrente.
Analisando mais a fundo as estruturas sociais que contribuem para esse processo de desumanização ideológica, concluímos que o próprio direito positivo, na forma clássica como ainda é teorizado e aplicado, inclusive no Brasil, tem sua larga cota de responsabilidade. Os direitos fundamentais, entendidos aqui como a face positivada dos direitos humanos, são talvez o ponto mais sensível e o grande desafio atual da dogmática jurídica, enquanto ciência positiva eminentemente linguístico-semântica. É que o direito (ainda) é encarado como aquilo que o Estado decidiu que ele fosse, e, justamente por isso, pode ter seu conteúdo alterado a qualquer tempo e pelas mais variadas vias, inclusive pela estabilização de convenções sociais formadas ao longo dos anos. Nesse sentido, temos a clássica lição de Kelsen, com a impossibilidade de se extrair um juízo de dever ser a partir de um juízo de ser. De algo que é, não se pode extrair algo que deve ser. Com isso se pode subjetivar “verdades” que, do ponto de vista dos sentidos, são eminentemente objetivas, como o fato da cor azul não ser azul e o fato da espécie humana não ser notadamente formada por seres de diversas cores e cada um com centro volitivo autônomo e individualizado.
É nesse sentido, achamos, que Lidgren Alves diz que os direitos humanos adquiriram inusitada força discursiva, mas são ameaçados de todos os lados. Afirmaram-se como baliza da legitimidade institucional, mas sofrem duros golpes da globalização econômica. Tais direitos são excelentes para inspirar belos discursos e belas intenções, mas pelas razões acima expostas e a despeito de serem “naturais” e “universais” podem ser moldados conforme os interesses das épocas. Esse processo, pode, inclusive, desencadear a revisão de conquistas já estabelecidas e positivadas, como a extinção da pena de morte, tão propalada hoje em dia. Ou chegarmos ao cúmulo de não mais tipificar como homicídio, a morte de jovens, negros e pobres, como consequência do processo de desumanização desse segmento social. É que, no Brasil, a referida desumanização dos excluídos se mostra de forma clara justamente nas tristes estatísticas acima colacionadas, pelo que podemos concluir que, além da “desesperança, a rua, a mendicância e o crime”, ao brasileiro jovem, negro  e excluído resta também uma morte violenta, a qual o estado não se preocupará em punir.

*Esta palestra foi proferida no I Seminário Direitos Humanos: Humanos Direito, em abril de 2015, na cidade de Marabá, e foi inspirada, dentre outras, na seguinte obra:
ALVES, J. A. Lindgren. A desumanização do Humano (1998). In Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2013. Cap. 01.

Regras x Princípios: há espaço para ditaduras em um mundo pós-moderno?


Nossa contribuição ao "aulão das humanas" organizado pelo Emancipa - Marabá, rede de cursinhos populares que funciona no seio da Unifesspa:

Apesar de não haver um consenso sobre qual seria o marco temporal correspondente ao início da pós-modernidade, é possível "sentir" as suas principais características, dentre elas a alta complexidade dos comportamentos e das relações sociais, o pluralismo cultural e político, e a pulverização da vocalidade, principalmente pelos novos canais tecnológicos.
Sensível a essa realidade pós-moderna e influenciado pela virada linguística na filosofia, há cerca de 40 anos o direito passou a produzir o seu discurso não só por meio de regras, mas também através dos princípios. Ambos, regras e princípios, são atualmente expressões normativas utilizadas pelo Estado para direcionar as condutas e dirimir os conflitos.
As regras são estruturas fechadas que não dão margem para flexibilização. Com elas, ou temos tudo ou não temos nada, não há meio termo. Produz comportamentos e decisões padrões, tipo uma forma. Dentre as vantagens das regras, podemos citar a segurança gerada pela "previsão"  do futuro e a facilidade para se chegar a uma decisão sobre uma dada situação concreta. Dentre as desvantagens, temos a incapacidade para lidar com a individualidade das pessoas, o fechamento dos espaços para debate, e a perpetuação no tempo de uma vontade estatal que, apesar de soberana, pode ter se tornado obsoleta e anacrônica. Exemplo de regra: só é permitido o voto para os brasileiros maiores de 16 anos.
Já os princípios são estruturas abertas que carregam valores e podem ser moldadas às situações concretas. São mandados de otimização, pois buscam sempre a solução mais adequada. Produzem comportamentos e decisões que se ajustam ao caso concreto. Em se tratando se princípios, nunca há uma resposta pronta e acabada, mas sim o ponto de partida para a construção de uma solução sob medida. Dentre as vantagens dos princípios, podemos citar: respeita as particularidades dos indivíduos e das situações; garante que haverá debate em todos os casos e, consequentemente, possibilidade de influência na decisão final; assegura uma maior vocalidade aos diversos segmentos sociais; constrói decisões atuais. As desvantagens são: maior dificuldade para formar um consenso ou chegar a uma decisão e maior risco de decisões inesperadas. Exemplo de princípio: dignidade da pessoa humana.
Em um mundo pós-moderno, que valoriza a diversidade, o pluralismo e o debate, as regras estão cada vez mais perdendo espaço para os princípios, pois elas não são capazes de abrigar as múltiplas formas de manifestação que o homem encontrou para dizer quem é e o que faz aqui. Todos queremos ver nossas individualidades reconhecidas e respeitadas, mas isso nem sempre é algo que se consegue tratando todos segundo uma única regra.
Podemos agora nos perguntar: uma ditadura é feita de regras ou de princípios? Os ditadores apresentados pela história estavam preocupados em ouvir as pessoas ou em lhes impor a sua vontade? É mais fácil para um ditador governar um país usando regras ou princípios? Porque as ditaduras precisam sempre recorrer à violência e à censura?
No caso do Brasil, estamos ainda começando a operar com princípios, ou seja, estamos a cada dia nos tornando uma nação mais pós-moderna e plural. Novos espaços de debate surgem a cada dia, e isso significa mais vocalidade para as pessoas manifestarem suas individualidades. Os princípios estão cada vez mais sendo usados para produzir decisões judiciais mais justas e adequadas aos casos concretos. Os ganhos sociais, culturais e políticos são significativos demais para abrirmos mão desse processo.
Logo, podemos facilmente perceber que uma sociedade que pretende ser plural, complexa e, portanto, pós-moderna, não pode renunciar ao modelo democrático para abraçar uma ditadura. Um retorno ao mundo das regras implicaria calar a voz de milhões de pessoas e, pior, fazê-las caber em um molde escolhido por quem sempre esteve acostumado a oprimir.
Precisamos, em verdade, nos educar e desenvolvermos nosso espírito político para participar de debates principiológicos. Ao final, as dificuldades parecerão pequenas diante do acerto e da eficácia das decisões e práticas políticas surgidas a partir daí.

Lições de Pasárgada ao novo CPC



Andrei Cesário de Lima Albuquerque
Acadêmico de Direito, UNIFESSPA
andreicesario@gmail.com
em 29/06/2015

Em sua tese de doutoramento "O direito dos oprimidos", Boaventura de Sousa Santos apresenta um estudo de caso dos mecanismos de prevenção e resolução de conflitos em uma comunidade do Rio de Janeiro no início dos anos 1970. Neste seu trabalho de campo, o jusfilósofo português nos apresenta o uso de um direito na favela do Jacarezinho diverso daquele positivado pelo estado. Em "Pasárgada", nome fictício dado pelo autor para descaracterizar a comunidade em tempos de ditadura militar no Brasil, praticava-se um direito muito mais ético e menos formal. Que lições o direito processual e o próprio judiciário poderiam aprender com esse "direito"?
O ideário juspositivista nos legou um direito moldado pelo formalismo e por um raciocínio pretensamente apodítico. As consequências políticas e, principalmente, sociais desse modelo, verificadas ao longo do século XX, deixam claro que o direito estatal, pensado para o mundo moderno e maquínico, chega em crise à sociedade pós-moderna e complexa. Superar o positivismo tornou-se necessário, mas igualmente desafiador.
Inspirados pelas notáveis conquistas das ciências naturais, que conseguiram melhorar o nível de conforto da humanidade (ou pelo menos da parte dela que poderia pagar por isso), os juristas do século XIX buscaram incorporar as certezas lógicas e incontestáveis, obtidas com o raciocínio apodítico, à forma de operacionalizar o direito. A letra da lei era sempre a premissa maior de um silogismo que tinha o caso concreto como um dado secundário (premissa menor). Da subsunção do fato à norma, nasceria a decisão para a questão, ou seja, brotaria dali a "justiça".
Apesar do modelo acima aplicar-se perfeitamente às ciências lógicas e naturais como a matemática, a física e a química, quando transplantado ampla e irrestritamente para disciplinas que se propõem a estudar o homem em sociedade e as normas que regem a sua conduta, tais como a sociologia, a moral e o direito, ele se mostra deveras danoso à busca de uma justa solução para um litígio.
Nesse sentido, o positivismo jurídico deixa claro que a sua preocupação com a segurança e com a estabilidade das relações sobrepõe-se aos esforços de se chegar a uma decisão mais razoável e adequada. Daí porque opta por uma forma de raciocínio que produziria resultados em série para conflitos nem tão semelhantes assim. O jurista positivista abomina a pós-modernidade e seus conflitos complexos e individualizados, para os quais a lei não oferece uma resposta pronta e acabada.
A inadequação "positivismo x pós-modernidade" fez nascer as escolas denominadas "pós-positivistas" e o modelo pautado nas regras e na lógica começou a ruir para dar lugar a outras manifestações normativas, a exemplo dos princípios. Analisaremos aqui alguns dos aspectos dessas mudanças a partir do direito processual civil, ramo de especialização do direito em que, tradicionalmente, as regras cumpriam o papel básico, mas que hoje caminha para um crescente pluralismo decisório. 
O novo código de processo civil pretende ritualizar as formas alternativas de resolução dos conflitos. A exemplo do que já ocorre na Justiça do Trabalho, a primeira providência do Juiz de Direito diante de um litígio processado pelo novo código será a instigação das partes a buscarem uma solução amigável para a questão, através da audiência prévia de conciliação. Veja-se o art. 334:
Art. 334.  Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
Não há dúvidas de que uma solução construída pelas partes por meio do diálogo terá um grau de adesão muito maior do que aquela imposta verticalmente pelo magistrado. Daí porque a solução
Além disso, às partes foi reconhecido o direito de celebrarem negócios processuais sobre os mais variados temas, não mais estando restritas às hipóteses expressamente previstas em lei. Essa descentralização, que Fredie Didier vem denominando de "negócios processuais atípicos", está autorizada pelo art. 190, do Novo CPC:
Art. 190.  Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Tratam-se verdadeiros acordos de vontade celebrados pelas partes sobre como a marcha processual caminhará. Imagine-se o incremento de legitimidade que o processo recebe quando ele próprio passa a ser construído pelas partes! Didier vai dizer que essa inovação veio para deixar o processo menos prêt-à-porter, transformando-o em uma verdadeira peça de alfaiataria, sob encomenda. Nada mais pós-moderno e adequado para atender a uma sociedade cada vez mais complexa.
O novo código de ritos também é o responsável por reforçar a normatividade dos princípios, hipótese, contudo, já há muito admitida pela doutrina e pela jurisprudência. Veja-se o art. 8º:
"Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência".
O código anterior falava em "normas legais", expressão que foi felizmente substituída por "ordenamento jurídico" (art. 126), eis que esta contempla tanto as regras quanto os princípios. Ao contrário das regras, os princípios são estruturas de textura aberta, com conteúdo a priori indeterminado, mas que se desnuda na análise do caso concreto. Um ordenamento jurídico com menos regras e com mais princípios é certamente um sistema mais pós-moderno, com recursos e ferramentas mais eficazes para resolver a enorme gama de tipos de conflitos decorrentes da complexidade. 
Bom destacar que o novo rito processual também busca ser mais efetivo e eficaz, seja por meio da autocomposição, seja pela manifestação direta da jurisdição estatal. É um processo em que ficou mais fácil realizar a justiça, mas o preço para isso foi a perda de uma parcela da previsibilidade e, por conseguinte, da segurança que existia nas regras rígidas e irreleváveis de outrora. Como lidar com isso?
Desde suas primeiras linhas, o pós-positivismo vem obrigando os juristas a teorizarem sobre essa mitigação da segurança jurídica e sobre como lidar com ela dentro de um sistema jurídico que (ainda) serve à economia de mercado e aos seus cálculos atuariais e utilitaristas. Sensível a isso, a nova ordem processual também cria e remodela mecanismos de previsibilidade e segurança.
No caso do novo CPC, juntamente com a liberdade para valorar e aplicar todo o ordenamento jurídico aos casos concretos, veio para os tribunais o dever de uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Veja-se o que diz os arts. 926 e 927: 
Art. 926.  Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Art. 927.  Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
(...)
Em uma primeira análise, essa vinculação aos tribunais ad quem parece ferir de morte o dogma do livre convencimento do magistrado (a expressão "livre" nessa sentença foi, inclusive, suprimida no novo código). O desenrolar das decisões após a entrada em vigor do novo código é que vai mostrar o quão dispostos estarão os nossos juízes, principalmente os de primeiro grau, a mitigar os poderes de sua investidura, decidindo por "disciplina judiciária".
Não obstante, a nova sistemática conferirá em certa medida uma carga maior de legitimidade democrática às decisões proferidas pelo judiciário, pois privilegia o entendimento dos tribunais políticos, daqueles em que seus membros decidem de forma colegiada e são escolhidos/indicados pelos poderes eleitos pelo voto.
Em suma, a partir de Pasárgada, estamos buscando construir um direito mais indulgente no formalismo, mas severo no conteúdo ético.



Referências:

ANDRÉA. Fernando de. Robert Alexy: introdução crítica. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

BRASIL. Lei 13.105/2015. Código de processo civil. Disponível em www.presidencia.gov.br. Acesso em jun. 15.

DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. Salvador: Jus Podivum, 2015.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos. São Paulo: Cortez, 2014.