segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A doutrina do abuso de direitos e a concretização de direitos sociais

por Andrei Cesário de Lima Albuquerque

Este post é inspirado na leitura recente que fiz do livro "The general exception clauses of the TRIPS agreement: Promoting Sustainable Development", de Edson Rodrigues Beas Júnior. Somente após ler a versão em inglês é que descobri que a obra foi traduzida e está disponível no mercado brasileiro com o título "Acesso ao conhecimento e os testes dos três passos dos direitos de autor, de marca, de patente e de desenho industrial", publicado pela editora Singular.
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No geral, o livro discute como o teste dos três passos, previstos no acordo TRIPS (Trade-related aspects of intellectual property rights - Aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio), pode ser utilizado para decidir sobre a legalidade das limitações não-escritas sobre os direitos de propriedade intelectual, no sentido de viabilizar um modelo sustentável de desenvolvimento (principalmente nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento), bem como para concretizar direitos humanos.
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Nesse sentido, podemos ler o livro sob, pelo menos, duas perspectivas: uma prática e outra teórica. Pela perspectiva prática, os profissionais do direito que lidam com essas questões polêmicas da propriedade intelectual têm neste livro um importante repositório dos debates que cercaram os casos mais emblemáticos e interessantes sobre o tema, bem como um guia argumentativo para os inúmeros casos difíceis que certamente ainda virão. Já do ponto de vista teórico, a obra reúne os fundamentos dogmáticos para técnicas interpretativas/argumentativas e para doutrinas que podem ser a base de um leque muito maior de demandas relacionadas aos direitos humanos, tanto individuais e coletivos, quanto sociais.
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Aqui, trataremos da doutrina do abuso de direitos, trabalhada pelo autor, e de como ela pode ser utilizada para reconhecer violações de direitos trabalhistas (direitos sociais) e para fundamentar pleitos e decisões no sentido de coibi-las.
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A principal característica de uma situação de abuso de direito é a observância das formalidades legais, ou seja, formalmente, na maioria dos casos, o que se tem é um ato/negócio jurídico lícito.
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O fundamento normativo para a ilicitude do abuso de direitos pode ser primeiramente encontrado no art. 32 (2), da Convenção Interamericana de Direitos Humanos: "Os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos demais, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum, numa sociedade democrática". O nosso Código Civil também dispõe: "Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."
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A racionalidade por trás desse conteúdo normativo é que, primeiramente, não há direitos absolutos. Além disso, todos os direitos foram criados com uma finalidade específica e, no geral, todos eles pretendem proporcionar ganhos sociais, mesmo que, em um primeiro momento, o beneficiário aparente seja um indivíduo em particular. Quando essa finalidade específica é desvirtuada, tem-se o abuso do direito.
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Como bem aponta o autor, essa doutrina é especialmente útil para estabelecer os limites de um direito, cujos contornos não são especificados com precisão, mas que o seu exercício pode causar danos a terceiros ou mesmo afetar a realização de outros direitos. Pensando no direito internacional e nas regras que regem o comércio entre os povo, ele indica também dois requisitos para caracterizar um abuso de direito: 1 - o exercício de um direito em detrimento da sua função social; e 2 - a existência de danos a terceiros, ante a não realização da função social do direito em questão. Note-se que o nosso código civil sequer exige o dano como elemento caracterizador do abuso de direito.
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Apresentadas essas ideias, nossa proposta aqui é relacionar o abuso de direito com o exercício do jus variandi patronal, nas relações de emprego. Não há dúvidas de que quem contrata tem o direito de indicar o cargo e definir as funções a serem desempenhadas pelo trabalhador ao longo do pacto. Para as profissões regulamentadas, o exercício desse direito já sofre alguma limitação, pois a própria lei indica as atribuições dessas classes. O problema surge com as funções mais gerais, para as quais não se exige formação específica, e o patrão poderá exercer o seu direito de direção com maior amplitude. E a nossa experiência prática vem mostrando que, com frequência, os empregadores estão demandando de seus empregados muito além do que seria razoável.
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Nesses casos, o trabalhador pode pleitear um plus salarial, decorrente do acúmulo de funções que extrapolam irrazoavelmente ao que fora inicialmente pactuado, mesmo que o cumprimento das tarefas se dê sem acréscimo da jornada de trabalho. Mas como fundamentar um pedido como esse?
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Sem dúvida, estamos diante de um caso de abuso de direito por parte do empregador. Utilizando os requisitos apresentados no livro, temos que a conduta patronal não observa a função social do trabalho, cujo parâmetro é a ideia de trabalho digno. Ora, se uma pessoa resolve autonomamente, no exercício da sua dignidade, aceitar um posto de trabalho, ela faz isso porque precisa, mas também porque essa será a forma dela contribuir com o desenvolvimento do lugar onde ela vive. Ao desvirtuar desarrazoadamente o plexo inicial de funções, o empregador certamente estará privando o empregado de exercer suas opções de vida, e, em alguns casos, colocando a própria existência em risco, nos casos em que a função extra demanda uma experiência e uma destreza que o trabalhador não tem.
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Do Código Civil, temos que também é abuso de direito a extrapolação dos seus fins econômicos. O Estado autoriza o contrato de trabalho para que as pessoas, por seus próprios esforços, mas operando o capital e os insumos de outrem, possam autonomamente produzir riqueza para si e para a economia como um todo. Daí, a busca do pleno emprego ser um norte de muitos governos capitalistas ao redor do mundo. Quando um empregador, ao contrário, opta por submeter um único empregado ao desempenho de funções para as quais deveria contratar dois ou três funcionários ele certamente está burlando as expectativas econômicas nele depositadas pelo governo, por seus concorrentes (dumping social), e pela sociedade como um todo.
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A reprovabilidade dessa conduta vem sob a forma de sentença condenatória a obrigação de pagar ao trabalhador um percentual de seu salário base, durante o período em que restou comprovada a acumulação de funções.
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Em resumo, mesmo no direito do trabalho, em que o conteúdo do contrato de emprego é amplamente preenchido pela lei, a doutrina do abuso de direito apresenta-se como um importante recurso dogmático para resgatar a justiça em alguns muitos casos concretos, especialmente em tempos de crise econômica.
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domingo, 2 de outubro de 2016

Mídia, propaganda política e manipulação, de Noam Chomsky

É uma obra bem curta e está disponível por um preço bem acessível na Amazon.com.br. Vale a pena ler, caso você esteja interessado em compreender melhor a imbricada influência da mídia na política americana. Acaba sendo uma boa lente para analisar o cenário que se desenha no Brasil.

O autor defende que há um conceito real de democracia que diverge do senso comum. Uma democracia que limita o acesso à informação e aos meios de divulga-la. O livro vai explicar como esse conceito se desenvolve e como o problema da mídia e da desinformação se insere neste contexto.

Ele carrega uma crítica bem incisiva, dizendo, por exemplo, que a democracia americana tem sua origem na concepção de pensadores e publicitários como John Dewey, e funcionava segundo a racionalidade de que a maioria da população é estúpida demais para compreender as coisas. Havendo uma eleição e esse rebanho elegendo seu representante dentre esses que não são estúpidos, o povo deve sair de cena e ser mero espectador, nunca participante da ação política.

Segundo o autor, a democracia atual é uma farsa que depende da formação de consensos para se perpetuar. A principal ferramenta para a formação desses consensos é a propaganda.

Os publicitários interferem na mente das pessoas fazendo-as crer que o mundo passado na televisão é o fim a ser alcançado e se algo perturba esse modelo deve ser obra de pessoas loucas que não querem que as outras pessoas sejam felizes. Daí a baixa popularidade dos sindicatos e de outros movimentos sociais coletivos.

Seguindo os passos do texto, em nossa análise, a mídia e a propaganda acabam servido ao propósito de desmobilizar a classe operária e inviabilizar a revolução proletária anunciada por Marx. Os trabalhadores não se enxergam como classe, mas sim como indivíduos, e esse sistema midiático tem grande papel nisso.

Citações diretas importantes:

"Considerando o papel que a mídia ocupa na política contemporânea, somos obrigados a perguntar: em que tipo de mundo e de sociedade queremos viver e, sobretudo, em que espécie de democracia estamos pensando quando desejamos que essa sociedade seja democrática?"
"Temos que domesticar o rebanho desorientado, impedir que ele arrase, pisoteie e destrua as coisas. É mais ou menos a mesma lógica que diz não ser apropriado deixar uma criança de três anos atravessar a rua sozinha. (...) Assim, precisamos de algo que domestique o rebanho desorientado, e esse algo é a nova revolução na arte da democracia: a produção de consenso." 
"A propaganda está para a democracia assim como o porrete está para o estado totalitário." 

Referência:

CHOMSKY, Noam. Mídia, propaganda política e manipulação. São Paulo: Martins Fontes, 2014.


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terça-feira, 3 de novembro de 2015

O problema da massificação das identidades em Amartya Sen

Em sua obra "As pessoas em primeiro lugar", o prêmio Nobel de economia Amartya Sen discorre sobre vários temas relacionados à efetivação de direitos, modelos políticos e papéis do mercado.
Um ponto interessante discutido no livro é a relação entre a imposição de padrões de identidades e a negação de direitos humanos a comunidades religiosas, étnicas e político-sociais. Segundo o autor, Samuel Huntington impactou o mundo ocidental com a ideia do "choque de civilizações", segundo a qual as pessoas de diferentes povos não interagiam com as pessoas em si, mas sim com os padrões previamente idealizados para àquele determinado grupo social. Então, fala-se do mundo islâmico, do mundo cristão, do mundo budista olvidando-se que a fé religiosa de alguém não resolve em si mesmo todas as decisões que essa pessoa tem que tomar ao longo da vida.
Para Sen, esse processo de negação de identidades viola o direito humano de ver a nossa identidade do jeito que escolhemos. Tal direito parece ser mais um corolário da premissa kantiana de que a pessoa deve ser enxergada como um fim em si mesmo, pois do contrário, em se lhe negando a autonomia de escolher como o mundo deve enxergá-la, estar-se-á diante de um mero instrumento estatístico para avolumar a representatividade deste ou daquele grupo. Esta ideia também está de acordo com a perspectiva pós-moderna de enxergar o mundo por meio da fragmentação de sua complexidade. E o autor vai dizer ainda que essa padronização de grupos é a causa de inúmeras violações de direitos ao longo dos anos, principalmente em fatos recentes, como o 11/09 e a invasão do Afeganistão e do Iraque. Muitas vidas estão sendo perdidas pela desconsideração da pessoa em si. 
"A imposição de uma identidade não refletida pode matar como a peste"
O caminho para um nível maior de harmonia entre os povos (ou mesmo para a criação de alguma harmonia no mundo) passa pelo reconhecimento de que somos "diversamente diferentes", enquanto pessoas e não apenas enquanto povos ou grupos religiosos. 
Relembrando a lição de Bourdieu, Amartya Sen vai dizer que uma categorização socialmente formulada acaba por produzir uma diferença onde não existia nenhuma. Ou seja, ao invés dos pré-juízos serem consequências dos fatos históricos, em verdade deles são as causas.
Não se pode classificar as pessoas segundo determinados estereótipos, muito menos partir dessa classificação para estabelecer a forma de interação que se terá com ela. Não se pode deduzir do fato de uma pessoa morar em uma favela brasileira a conclusão de que ela é criminosa. Não se pode achar que a honestidade tem uma cor ou uma posição social (vide nosso políticos). Eis aí uma das causas do preconceito que ofusca o brilho da diversidade brasileira.
Como diz Bourdieu, a massificação das identidades cria uma armadilha: a de que a própria pessoa se convença de o grupo corresponde e determina a sua identidade, e passe a conduzir suas ações irrefletidamente segundo os estereótipos que lhe foram postos.



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terça-feira, 13 de outubro de 2015

A desumanização do humano e o extermínio de jovens negros no Brasil

O nosso país matou, em 2012, mais de 56.314 pessoas. Dessas, segundo o levantamento feito pela organização Mapa da Violência, 30.072 são jovens, sendo que a proporção entre negros e brancos, nessa amostra, é de 132,3%, ou seja, para cada branco vítima de homicídio, morreram 2,3 negros. A série histórica mostra que essa proporção só aumenta: em 2002 era de 65,4%, em 2006 de 90,8%, chegando aos 132,3%, em 2012.
Diga-se ainda que, por se tratar de uma média nacional, esse dado esconde terríveis índices locais, como na Paraíba, onde para cada branco assassinado, morrem 19 negros, e em Alagoas, onde a proporção é de 1 para 18. Coincidência?
Um dos nossos propósitos aqui na Universidade é fazer uma leitura crítica da realidade, analisando os fatos com a ajuda dos conceitos aprendidos nas diversas disciplinas. Dessa análise resultam conclusões muitas vezes não percebidas pelo senso comum, mas que são extremamente úteis para desvelar situações graves e, se for este o propósito, apontar possíveis soluções e caminhos a serem trilhados. Percebem como nosso papel aqui é importante?
Nesse sentido, como podemos interpretar esses dados sobre o número e a proporção de homicídios entre jovens negros e brancos, à luz da doutrina dos Direitos Humanos? Uma análise histórica poderia nos mostra a escravidão dos negros e seus desdobramentos nos dias atuais como uma possível explicação para tais disparidades; uma análise socioeconômica iria tentar associar as mortes com o maior nível de pobreza da população negra; mas o que nos diria sobre isso a teoria dos Direitos Humanos?
O diplomata Lindgren Alves pode nos ajudar a entender melhor isso. Em sua obra "Os direitos humanos na pós-modernidade", ele trabalha muito bem o fenômeno da "desumanização do humano", e essa pode ser a chave para entendermos porque morrem tantos jovens negros no Brasil.
Como se pode notar, ao invés de se buscar alternativas construtivas para integrar o jovem negro na sociedade, o Brasil está simplesmente assassinando os indivíduos desse segmento social que, por um motivo ou outro, não lograram êxito em se inserir na roda econômica, seja frequentando uma universidade, seja pela ocupação de um posto formal de trabalho.
Trata-se, em verdade, de um verdadeiro genocídio, o qual, acreditamos, pode ser explicado a partir do conceito de desumanização do humano proposto por Lindgren Alves. Temos dois fortes indícios sobre isso: (1) Infelizmente, ainda paira no imaginário do povo brasileiro a imagem do negro escravizado e utilizado como mera força motriz. Tal figura é construída, inclusive, pelos livros de história utilizados pelas nossas crianças, os quais tratam a escravidão como uma questão econômica e não de violação de direitos humanos. Assim, se perpetua a imagem do negro como peça de uma engrenagem, que, se inservível para o paradigma capitalista vigente atualmente no Brasil, deve ser prontamente descartada. Desde pequenos somos acostumados a ver o negro apenas como essa engrenagem, e nunca como operador da máquina. (2) O tempo que a mídia dedica aos casos envolvendo o homicídio de pessoas brancas e ricas é muito maior do que o de jovens negros e pobres. Isso obviamente causa uma comoção muito maior, gerando a (falsa) sensação de que a morte de um branco e rico é muito mais sentida do que a de um jovem negro e pobre. Outro efeito deletério dessa maior exposição da mídia é a pressa do poder público em dar uma resposta ao caso. Quem não lembra do caso Nardoni, do caso Mércia Nakashima, do caso Von Richthofen, e tantos outros? mas quem lembra de algum caso de homicídio envolvendo um jovem, negro e pobre como vítima?
Esses indícios, e tantos outros, sugerem, na nossa opinião, que está havendo um processo de "desumanização ideológica", fazendo uso da expressão cunhada por Alves, do segmento da sociedade representado pelos jovens, negros e pobres. Esse processo, se não notado logo e combatido de forma incisiva, pode levar a resultados catastróficos. Essa desumanização ideológica atravessou a história das sociedades ocidentais ao longo dos séculos chancelando os mais diversos atos de barbárie contra aqueles que, dada a conjuntura político-social de uma determinada época, não estavam albergados no "conceito oficial" de "ser humano". Utiliza-se, portanto, um artifício lógico-retórico, assentado em premissas falsas criadas pela estrutura dominante para alimentar um "senso comum", para esvaziar o conteúdo do conceito de ser humano até a medida que mais aprouver ao agressor, o qual não incorrerá sequer em pecado, pois, segundo a nova calibração do seu "ser-humantímetro", ele estará lidando com um simples semovente, ou seja, um não humano, indigno de ser reconhecido como pessoa. Esse "ser-humantímetro" seria, portanto, uma espécie de régua, com a qual aqueles que controlam as superestruturas de uma determinada época utilizariam para "medir" o quão humano uma pessoa é, de acordo com o seu enquadramento, ou não, na estrutura físico-comportamental que se espera para aquela época/lugar.
Foi assim com os escravos e estrangeiros na Grécia, em que pese o ideal de justiça platônico e as regras de equidade aristotélicas, as quais valiam apenas para os gregos, sendo essa (ser grego) a calibração do "ser-humantímetro" deles. Foi assim também na escravização dos africanos e na perseguição das bruxas pela sociedade cristã europeia, em que pese as súplicas do Messias para que simplesmente amassem uns aos outros como a si mesmos. Nesse caso, o "ser-humantímetro" foi calibrado para não considerar humanos todo aquele que tivesse uma cor diferente do padrão europeu. Ainda é assim em muitos países muçulmanos, onde a clitoridectomia ainda é bastante difundida, em que pese alguns estados como o Egito já terem formalmente proibido a prática. E ainda o é no Brasil, onde os jovem negros que não se adequam ao modelo de realização pessoal prescrito pelo sistema são descartados, em que pese haver uma constituição cidadã, festejada e em pleno vigor, assegurando a todos igualdade de direitos e oportunidades sem distinção de cor e condição social. E esse é o processo de "desumanização ideológica" que nosso grupo enxergou na sociedade brasileira: silencioso, mas presente; pouco alardeado, mas recorrente.
Analisando mais a fundo as estruturas sociais que contribuem para esse processo de desumanização ideológica, concluímos que o próprio direito positivo, na forma clássica como ainda é teorizado e aplicado, inclusive no Brasil, tem sua larga cota de responsabilidade. Os direitos fundamentais, entendidos aqui como a face positivada dos direitos humanos, são talvez o ponto mais sensível e o grande desafio atual da dogmática jurídica, enquanto ciência positiva eminentemente linguístico-semântica. É que o direito (ainda) é encarado como aquilo que o Estado decidiu que ele fosse, e, justamente por isso, pode ter seu conteúdo alterado a qualquer tempo e pelas mais variadas vias, inclusive pela estabilização de convenções sociais formadas ao longo dos anos. Nesse sentido, temos a clássica lição de Kelsen, com a impossibilidade de se extrair um juízo de dever ser a partir de um juízo de ser. De algo que é, não se pode extrair algo que deve ser. Com isso se pode subjetivar “verdades” que, do ponto de vista dos sentidos, são eminentemente objetivas, como o fato da cor azul não ser azul e o fato da espécie humana não ser notadamente formada por seres de diversas cores e cada um com centro volitivo autônomo e individualizado.
É nesse sentido, achamos, que Lidgren Alves diz que os direitos humanos adquiriram inusitada força discursiva, mas são ameaçados de todos os lados. Afirmaram-se como baliza da legitimidade institucional, mas sofrem duros golpes da globalização econômica. Tais direitos são excelentes para inspirar belos discursos e belas intenções, mas pelas razões acima expostas e a despeito de serem “naturais” e “universais” podem ser moldados conforme os interesses das épocas. Esse processo, pode, inclusive, desencadear a revisão de conquistas já estabelecidas e positivadas, como a extinção da pena de morte, tão propalada hoje em dia. Ou chegarmos ao cúmulo de não mais tipificar como homicídio, a morte de jovens, negros e pobres, como consequência do processo de desumanização desse segmento social. É que, no Brasil, a referida desumanização dos excluídos se mostra de forma clara justamente nas tristes estatísticas acima colacionadas, pelo que podemos concluir que, além da “desesperança, a rua, a mendicância e o crime”, ao brasileiro jovem, negro  e excluído resta também uma morte violenta, a qual o estado não se preocupará em punir.

*Esta palestra foi proferida no I Seminário Direitos Humanos: Humanos Direito, em abril de 2015, na cidade de Marabá, e foi inspirada, dentre outras, na seguinte obra:
ALVES, J. A. Lindgren. A desumanização do Humano (1998). In Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2013. Cap. 01.

Regras x Princípios: há espaço para ditaduras em um mundo pós-moderno?


Nossa contribuição ao "aulão das humanas" organizado pelo Emancipa - Marabá, rede de cursinhos populares que funciona no seio da Unifesspa:

Apesar de não haver um consenso sobre qual seria o marco temporal correspondente ao início da pós-modernidade, é possível "sentir" as suas principais características, dentre elas a alta complexidade dos comportamentos e das relações sociais, o pluralismo cultural e político, e a pulverização da vocalidade, principalmente pelos novos canais tecnológicos.
Sensível a essa realidade pós-moderna e influenciado pela virada linguística na filosofia, há cerca de 40 anos o direito passou a produzir o seu discurso não só por meio de regras, mas também através dos princípios. Ambos, regras e princípios, são atualmente expressões normativas utilizadas pelo Estado para direcionar as condutas e dirimir os conflitos.
As regras são estruturas fechadas que não dão margem para flexibilização. Com elas, ou temos tudo ou não temos nada, não há meio termo. Produz comportamentos e decisões padrões, tipo uma forma. Dentre as vantagens das regras, podemos citar a segurança gerada pela "previsão"  do futuro e a facilidade para se chegar a uma decisão sobre uma dada situação concreta. Dentre as desvantagens, temos a incapacidade para lidar com a individualidade das pessoas, o fechamento dos espaços para debate, e a perpetuação no tempo de uma vontade estatal que, apesar de soberana, pode ter se tornado obsoleta e anacrônica. Exemplo de regra: só é permitido o voto para os brasileiros maiores de 16 anos.
Já os princípios são estruturas abertas que carregam valores e podem ser moldadas às situações concretas. São mandados de otimização, pois buscam sempre a solução mais adequada. Produzem comportamentos e decisões que se ajustam ao caso concreto. Em se tratando se princípios, nunca há uma resposta pronta e acabada, mas sim o ponto de partida para a construção de uma solução sob medida. Dentre as vantagens dos princípios, podemos citar: respeita as particularidades dos indivíduos e das situações; garante que haverá debate em todos os casos e, consequentemente, possibilidade de influência na decisão final; assegura uma maior vocalidade aos diversos segmentos sociais; constrói decisões atuais. As desvantagens são: maior dificuldade para formar um consenso ou chegar a uma decisão e maior risco de decisões inesperadas. Exemplo de princípio: dignidade da pessoa humana.
Em um mundo pós-moderno, que valoriza a diversidade, o pluralismo e o debate, as regras estão cada vez mais perdendo espaço para os princípios, pois elas não são capazes de abrigar as múltiplas formas de manifestação que o homem encontrou para dizer quem é e o que faz aqui. Todos queremos ver nossas individualidades reconhecidas e respeitadas, mas isso nem sempre é algo que se consegue tratando todos segundo uma única regra.
Podemos agora nos perguntar: uma ditadura é feita de regras ou de princípios? Os ditadores apresentados pela história estavam preocupados em ouvir as pessoas ou em lhes impor a sua vontade? É mais fácil para um ditador governar um país usando regras ou princípios? Porque as ditaduras precisam sempre recorrer à violência e à censura?
No caso do Brasil, estamos ainda começando a operar com princípios, ou seja, estamos a cada dia nos tornando uma nação mais pós-moderna e plural. Novos espaços de debate surgem a cada dia, e isso significa mais vocalidade para as pessoas manifestarem suas individualidades. Os princípios estão cada vez mais sendo usados para produzir decisões judiciais mais justas e adequadas aos casos concretos. Os ganhos sociais, culturais e políticos são significativos demais para abrirmos mão desse processo.
Logo, podemos facilmente perceber que uma sociedade que pretende ser plural, complexa e, portanto, pós-moderna, não pode renunciar ao modelo democrático para abraçar uma ditadura. Um retorno ao mundo das regras implicaria calar a voz de milhões de pessoas e, pior, fazê-las caber em um molde escolhido por quem sempre esteve acostumado a oprimir.
Precisamos, em verdade, nos educar e desenvolvermos nosso espírito político para participar de debates principiológicos. Ao final, as dificuldades parecerão pequenas diante do acerto e da eficácia das decisões e práticas políticas surgidas a partir daí.

Lições de Pasárgada ao novo CPC



Andrei Cesário de Lima Albuquerque
Acadêmico de Direito, UNIFESSPA
andreicesario@gmail.com
em 29/06/2015

Em sua tese de doutoramento "O direito dos oprimidos", Boaventura de Sousa Santos apresenta um estudo de caso dos mecanismos de prevenção e resolução de conflitos em uma comunidade do Rio de Janeiro no início dos anos 1970. Neste seu trabalho de campo, o jusfilósofo português nos apresenta o uso de um direito na favela do Jacarezinho diverso daquele positivado pelo estado. Em "Pasárgada", nome fictício dado pelo autor para descaracterizar a comunidade em tempos de ditadura militar no Brasil, praticava-se um direito muito mais ético e menos formal. Que lições o direito processual e o próprio judiciário poderiam aprender com esse "direito"?
O ideário juspositivista nos legou um direito moldado pelo formalismo e por um raciocínio pretensamente apodítico. As consequências políticas e, principalmente, sociais desse modelo, verificadas ao longo do século XX, deixam claro que o direito estatal, pensado para o mundo moderno e maquínico, chega em crise à sociedade pós-moderna e complexa. Superar o positivismo tornou-se necessário, mas igualmente desafiador.
Inspirados pelas notáveis conquistas das ciências naturais, que conseguiram melhorar o nível de conforto da humanidade (ou pelo menos da parte dela que poderia pagar por isso), os juristas do século XIX buscaram incorporar as certezas lógicas e incontestáveis, obtidas com o raciocínio apodítico, à forma de operacionalizar o direito. A letra da lei era sempre a premissa maior de um silogismo que tinha o caso concreto como um dado secundário (premissa menor). Da subsunção do fato à norma, nasceria a decisão para a questão, ou seja, brotaria dali a "justiça".
Apesar do modelo acima aplicar-se perfeitamente às ciências lógicas e naturais como a matemática, a física e a química, quando transplantado ampla e irrestritamente para disciplinas que se propõem a estudar o homem em sociedade e as normas que regem a sua conduta, tais como a sociologia, a moral e o direito, ele se mostra deveras danoso à busca de uma justa solução para um litígio.
Nesse sentido, o positivismo jurídico deixa claro que a sua preocupação com a segurança e com a estabilidade das relações sobrepõe-se aos esforços de se chegar a uma decisão mais razoável e adequada. Daí porque opta por uma forma de raciocínio que produziria resultados em série para conflitos nem tão semelhantes assim. O jurista positivista abomina a pós-modernidade e seus conflitos complexos e individualizados, para os quais a lei não oferece uma resposta pronta e acabada.
A inadequação "positivismo x pós-modernidade" fez nascer as escolas denominadas "pós-positivistas" e o modelo pautado nas regras e na lógica começou a ruir para dar lugar a outras manifestações normativas, a exemplo dos princípios. Analisaremos aqui alguns dos aspectos dessas mudanças a partir do direito processual civil, ramo de especialização do direito em que, tradicionalmente, as regras cumpriam o papel básico, mas que hoje caminha para um crescente pluralismo decisório. 
O novo código de processo civil pretende ritualizar as formas alternativas de resolução dos conflitos. A exemplo do que já ocorre na Justiça do Trabalho, a primeira providência do Juiz de Direito diante de um litígio processado pelo novo código será a instigação das partes a buscarem uma solução amigável para a questão, através da audiência prévia de conciliação. Veja-se o art. 334:
Art. 334.  Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
Não há dúvidas de que uma solução construída pelas partes por meio do diálogo terá um grau de adesão muito maior do que aquela imposta verticalmente pelo magistrado. Daí porque a solução
Além disso, às partes foi reconhecido o direito de celebrarem negócios processuais sobre os mais variados temas, não mais estando restritas às hipóteses expressamente previstas em lei. Essa descentralização, que Fredie Didier vem denominando de "negócios processuais atípicos", está autorizada pelo art. 190, do Novo CPC:
Art. 190.  Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Tratam-se verdadeiros acordos de vontade celebrados pelas partes sobre como a marcha processual caminhará. Imagine-se o incremento de legitimidade que o processo recebe quando ele próprio passa a ser construído pelas partes! Didier vai dizer que essa inovação veio para deixar o processo menos prêt-à-porter, transformando-o em uma verdadeira peça de alfaiataria, sob encomenda. Nada mais pós-moderno e adequado para atender a uma sociedade cada vez mais complexa.
O novo código de ritos também é o responsável por reforçar a normatividade dos princípios, hipótese, contudo, já há muito admitida pela doutrina e pela jurisprudência. Veja-se o art. 8º:
"Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência".
O código anterior falava em "normas legais", expressão que foi felizmente substituída por "ordenamento jurídico" (art. 126), eis que esta contempla tanto as regras quanto os princípios. Ao contrário das regras, os princípios são estruturas de textura aberta, com conteúdo a priori indeterminado, mas que se desnuda na análise do caso concreto. Um ordenamento jurídico com menos regras e com mais princípios é certamente um sistema mais pós-moderno, com recursos e ferramentas mais eficazes para resolver a enorme gama de tipos de conflitos decorrentes da complexidade. 
Bom destacar que o novo rito processual também busca ser mais efetivo e eficaz, seja por meio da autocomposição, seja pela manifestação direta da jurisdição estatal. É um processo em que ficou mais fácil realizar a justiça, mas o preço para isso foi a perda de uma parcela da previsibilidade e, por conseguinte, da segurança que existia nas regras rígidas e irreleváveis de outrora. Como lidar com isso?
Desde suas primeiras linhas, o pós-positivismo vem obrigando os juristas a teorizarem sobre essa mitigação da segurança jurídica e sobre como lidar com ela dentro de um sistema jurídico que (ainda) serve à economia de mercado e aos seus cálculos atuariais e utilitaristas. Sensível a isso, a nova ordem processual também cria e remodela mecanismos de previsibilidade e segurança.
No caso do novo CPC, juntamente com a liberdade para valorar e aplicar todo o ordenamento jurídico aos casos concretos, veio para os tribunais o dever de uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Veja-se o que diz os arts. 926 e 927: 
Art. 926.  Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Art. 927.  Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
(...)
Em uma primeira análise, essa vinculação aos tribunais ad quem parece ferir de morte o dogma do livre convencimento do magistrado (a expressão "livre" nessa sentença foi, inclusive, suprimida no novo código). O desenrolar das decisões após a entrada em vigor do novo código é que vai mostrar o quão dispostos estarão os nossos juízes, principalmente os de primeiro grau, a mitigar os poderes de sua investidura, decidindo por "disciplina judiciária".
Não obstante, a nova sistemática conferirá em certa medida uma carga maior de legitimidade democrática às decisões proferidas pelo judiciário, pois privilegia o entendimento dos tribunais políticos, daqueles em que seus membros decidem de forma colegiada e são escolhidos/indicados pelos poderes eleitos pelo voto.
Em suma, a partir de Pasárgada, estamos buscando construir um direito mais indulgente no formalismo, mas severo no conteúdo ético.



Referências:

ANDRÉA. Fernando de. Robert Alexy: introdução crítica. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

BRASIL. Lei 13.105/2015. Código de processo civil. Disponível em www.presidencia.gov.br. Acesso em jun. 15.

DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. Salvador: Jus Podivum, 2015.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos. São Paulo: Cortez, 2014.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A Nova Retórica de Perelman, livro de Mieczyslaw Maneli

Introdução
A falência das diversas ideologias emergentes no século XX, como o socialismo, o liberalismo e o capitalismo, impõe a revisão de todas as bases das ideologias sociais e políticas, partindo, todavia, do presuposto de que não há verdade absoluta. A despeito disso, devemos procurar elementos de verdade, progresso humano, liberdade e tolerância em qualquer filosofia política e sistema sociopolítico.
A Nova Retórica é um instrumento que pode auxiliar na elaboração de novas formas de pensar e agir, de novas abordagens críticas para todas as instituições jurídicas, políticas e sociais, sejam elas do oriente ou do ocidente, apresentando-se como o método mais consistente para buscar novos caminhos.
Perelman reviveu as ideias de Aristóteles e as excedeu amplamente. Elaborou uma filosofia e metodologia direcionada contra as verdades absolutas e dogmas; contra também ao relativismo moderno nas teorias da política, dos valores, da lei e da moral, posto que tais conceitos são desastrosos para o pensamento acadêmico.
Apesar de inicialmente produtivo, o modo de pensar positivista desvirtuou-se na medida em que foi transformado em relativismo sem princípios e a lógica formal foi utilizada para propósitos meramente dogmáticos. Perelman manifestou-se contra esse raciocínio e resgatou a aristotélica diferença entre o racional e o razoável. Para Perelman, Descartes estava errado em afirmar que quando duas pessoas expressam ideias diferentes sobre a mesma situação social, pelo menos uma delas deve estar errada. Para a Nova Retórica, talvez ambos estejam certos e suas opiniões possam ser provadas no processo de diálogo e argumentação.
A grande máxima da Nova Retórica é entender possível e razoável elaborar e concretizar programas políticos ou sociais diferentes e contraditórios e, ainda assim, entender que ambos sejam, até certo ponto e por determinado período, benéficos para a sociedade. Os julgamentos que não se baseassem em categorias da lógica formal poderiam ainda assim ser razoáveis, e não irracional.
O diálogo na nova retórica não apenas tornou-se uma simples troca de ideias, mas uma categoria social que promove uma competição infinita de argumentos a fim de estabelecer a melhor solução possível para uma dada situação em um determinado momento. No entanto, quando um dos fatores da realidade muda, mesmo que por um pequeno lapso de tempo, surge uma causa válida para reabrir o diálogo e reavaliar a situação desde o começo, a partir de suas próprias raízes. Durante esse novo direcionamento, nada deve ser considerado sagrado ou estabelecido de forma definitiva. O diálogo na presença de uma audiência ilimitada torna-se um grande critério de verdade relativa e de soluções relativamente boas, mas que devem ser vistas apenas como temporárias. A natureza da nova retórica é compreendê-la e aplicá-la criativamente.
Perelman sustentava uma abordagem consistentemente antidogmática para a questão da verdade. E embora nunca subestimasse a lógica formal, hesitava em aplicá-la onde ela era inadequada, voltando para o pensamento plurista na busca de um novo conceito de argumentação e persuasão, criado para ser um instrumento de resolução de contradições sociais em escala interna, nacional e internacional.
Imerso no cenário de estagnação intelectual característico da guerra fria, Perelman condenava toda e qualquer forma de militarização na política e, nesse caso, onde a opção por soluções militares é excluída, as partes beligerantes devem ser persuadidas de que podem entrar num acordo, ainda que este não seja tão atraente para ambos, com base no diálogo retórico. "Nossa maior preocupação deve ser a necessidade de solucionar as inevitáveis contradições do mundo moderno de uma maneira pacífica. A maior virtude de qualquer estadita ou líder deve ser, portanto, sua habilidade de negociar e viver pela espada da persuasão e não a da aniquilação".
Cada estágio de nossa análise, investigação e justificação nos leva a determinadas conclusões que podem ser consideradas como verdade relativa ou absoluta. Tal verdade é uma reflexão parcial da realidade; é um ponto ou um estágio no entendimento dos processos que fazem parte da sociedade. Essa reflexão é incompleta e não pode ser uma apresentação e uma compreensão absolutamente correta dos acontecimentos porque nossas mentes são como espelhos com irregularidades. Por outro lado, essa verdade parcial, sempre o resultado da séria investigação e análise, faz parte do processo infinito de busca pela verdade absoluta, uma conquista que temos como objetivo e que seremos capazes de atingir com o tempo. A verdade absoluta no futuro será, de acordo com o ponto de vista retórico, a soma de infinitas verdades parciais. Dessa maneira, seremos capazes de combater dois tipos de perigo: o relativismo absoluto e o dogmatismo absoluto.
A modéstia e a tolerância são necessárias para todo pensador e estadista, para todo estudioso e político.

1 - Apresentação
Com a queda do comunismo e a desvelada frustração oriunda das democracias ocidentais, com seus modelos liberalistas ou facistas, a nova retórica apresenta-se como saída satisfatória para conciliar os antagonismos sociais. Na marxista visão da luta de classes, o papel da Nova Retórica é ainda mais importante, principalmente para sedimentar as mudanças políticas ocorridas no leste europeu com a queda da URSS. O destaque se comprova com a retórica de um diálogo havido na Polônia em 1988 e 1989 que contribuiu para enfraquecer a posição autoritária socialista naquele país. Isso é prova de que é bastante realista a crença da Nova Retórica na capacidade do diálogo para solucionar os conflitos mais agudos e complexos em determinadas situações. O poder da racionalização e da persuasão é capaz de vencer o terror cego e flagrante, seja ele ideológico ou físico. Em determinadas circunstâncias, o poder do bem moral e da razão pode se tornar decisivo no combate a forças maléficas, despóticas e reacionárias.
A nova retórica preconiza que devemos dirigir esforços para atingir a verdade relativa, soluções parciais e tentar ganhar algo razoável e consequentemente possível e atingível. Devemos analisar nossa situação de alto a baixo e, ou continuar a fazer o que estivermos fazendo, ou descartar as premissas mais amplamente aceitas, se estas se tornaram ultrapassadas. Não devemos temer que alguém nos diga que estamos errados ou que somos inconsistentes porque modificamos nossos métodos ou nossos objetivos. Não há virtude em ser teimoso, defender um curso equivocado ou continuar uma política cuja experiência não tenha crédito ou não sirva a interesses reais. Não devemos perseguir nada pelo bem da "firmeza", da "coerência", da "coesão" ou ainda pelo bem dos princípios. A nova retórica enaltece aqueles que hesitam, refletem e em seguida modificam o curso de sua ação. A única virtude moral e social é a nossa capacidade de reconsiderar, de entrar novamente num diálogo, de manter a mente aberta de ser flexível, de estar aberto a sugestões e estar disposto a seguir conselhos novos e razoáveis.
Na nova retórica, o objetivo do diálogo é separar o essencial do trivial e pesar os fatos e os julgamentos, não a fim de determinar um peso idêntico a eles, mas, pelo contrário, diferenciar seus valores e com isso ordenar o mosaico sem forma em uma entidade funcional e razoável, que pode ser utilizada para fins práticos e para pesquisa teórica adicional. Nos encontramos atualmente num grande cemitério histórico de ideias e de sistemas políticos e econômicos, porém, sem desesperos, devemos buscar valores que podem ser reavaliados, reutilizados, reciclados e reconstruídos num novo conjunto de projetos, leis e instituições apartidárias e suprapolíticas.

2 - As Origens e Bases da Nova Retórica
A nova retórica surgiu da necessidade premente de encontrar uma lógica de julgamento de valores que possibilitasse racionalizar sobre eles em vez de fazê-los depender exclusivamente de escolhas irracionais, baseadas no interesse, paixão, preconceito e mito.
Perelman não aceitava a utilização da lógica matemática para tratar dos temas inerentes às humanidades, e seus esforços intelectuais tiveram por resultado a "redescoberta" de um componente da lógica aristotélica que lidava com o raciocínio dialético, diverso do raciocínio demonstrativo, pois busca a lógica do razoável. A nova retórica tem servido assim, como um método para analisar os aspectos da vida que vão além dos moldes da lógica formal, sendo relegados a métodos normalmente distantes da aplicação da razão consciente.
A nova retórica possui três elementos básicos que constituem sua base metodológica como uma filosofia de racionalismo consistente: a) uma nova solução para a relação entre o razoável e o racional; b) o problema da audiência; c) o problema do diálogo.
A nova retórica vem contestar Descartes, que afirmava que, se dois homens possuíssem julgamentos contrários sobre o mesmo assunto, pelo menos um deles seria irracional e estaria enganado, embora ambos pudessem estar equivocados. Para a nova retórica, a pretensão cartesiana é excessiva e irracional, posto que ambas as partes podem possuir opiniões válidas e razoáveis, pois os problemas humanos, práticos, políticos e morais não podem ser reduzidos à antinomia, ao verdadeiro ou falso. Diversas opiniões podem ser razoáveis ao mesmo tempo porque há uma diferença entre o que é racional e o que é razoável.
A redução do racional a um princípio único nos leva ao pluralismo irracional ou ao monismo. Sistema utilizado pelos diversos regimes totalitários, cujas ações estiveram categoricamente justificadas pela lógica racional. Mas seriam tais condutas razoáveis? Seriam elas humanas?
A nova retórica não elimina a lógica formal e não rejeita o valor dos silogismos com relação à dedução e à indução, mas reserva um lugar apropriado para eles na totalidade do raciocínio humano. O conceito de razoável é inerentemente pluralístico, ele é incompatível com as pretensões do monismo ou do totalitarismo.
O racionalismo interpretado de forma restrita pode nos levar ao monismo e ao absolutismo; a busca pelo razoável, a uma visão pluralista do mundo. Segundo Bertrand Russell, "o homem racional seria simplesmente um mostro humano".
No tocante à teoria Pluralista do razoável, há um fator a mais que deve ser levado em conta, que é a sua mutabilidade. O razoável de ontem não é o razoável de hoje, pois o razoável se modifica à medida que a humanidade se modifica. O razoável se opõe à aceitação crítica da realidade estabelecida; ele promove a mudança pluralista; o racional pretende à estabilidade.
Mills chega a afirmar que a racionalidade justifica o status quo social e a insensatez conservadora a priori inimiga de qualquer inovação e do pluralismo democrático. O racionalismo moderno tende a caminhar para a uniformidade, enquanto o razoável sempre se opõe à uniformidade e enfraquece qualquer forma de ordem absoluta e promove o pluralismo entre todas as esferas da vida, no material e no espiritual, no econômico e no político.
Muitos filósofos desde Hume argumentaram que é impossível demonstrar que um conjunto de regras morais é preferível ao outro, ao que Perelman responde que se isso é verdade, deve-se então ampliar o domínio das investigações lógicas, para alcançar a lógica do razoável.
A nova retórica é uma teoria da argumentação para objetivos práticos, a fim de encontrar um modo de tomar decisões mais razoáveis, eficientes e justas, e que possam ganhar o maior apoio possível de um público dividido por diversas controvérsias. É uma teoria que nos auxilia conscientemente a tomar decisões práticas e ao mesmo tempo razoáveis, visando diretamente à ação.
O diálogo é a forma e a alma do processo da argumentação. O primeiro pré-requisito para a existência do diálogo é o interesse de pelo menos dois participantes na troca de ideias e na obtenção da adesão de intelectos. O segundo pré-requisito para a existência do diálogo é a liberdade dos participantes. Pode-se definir uma audiência, para fins retóricos, como o conjunto de pessoas que o orador deseja influenciar por meio da argumentação. O verdadeiro orador deve saber a arte da "adaptação contínua", a fim de garantir o caráter temporal da argumentação retórica. A nova retórica pressupõe um diálogo livre com um público livre do terror, o que não pode ocorrer no despotismo. A razão deve ser fortalecida pela nova teoria da argumentação e as soluções razoáveis devem ser pluralistas.
A lógica formal não questiona as premissas dadas, enquanto a nova retórica, por outro lado, é crítica em tudo. Ela não toma nada como certo, e não aceita nada que tenha sido estabelecido no passado sem questionamento. Os fatos designam o que foi acordado por uma determinada audiência como incontroverso, mas um fato pode deixar de ser um fato porque dúvidas foram levantadas sobre ele pelo público específico. Nesse aspecto, a nova retórica nunca dá conclusões, e a verdade, embora sempre em mutação, continua sendo algo tangível e aplicável porque é continuamente questionada em diálogos infinitos de audiências ilimitadas.
Sendo assim, estaríamos eternamente condenados à dúvida e à inquietação? Sim, mas na mudança há o descanso, e o que tende à destruição chama-se concordância e paz.
Concluindo, a nova retórica constitui uma base filosófica e metodológica para o conceito democrático do pluralismo. E vice-versa: o pluralismo nos leva à teoria da argumentação e necessita do seu apoio para sua própria existência. A teoria e a metodologia são inseparáveis dela. Essas considerações filosóficas e metodológicas gerais têm impacto direto sobre a filosofia do direito, a moral e a política.

3 - Nova Retórica e dialética
A dialética é a base e o sistema nervoso da Nova Retórica. Hegel apresentou uma forma geral de trabalho para a dialética de maneira completa e consciente, ao que Marx aproveitou amplamente os conceitos para erguer sua filosofia. Hegel analisou as diversas categorias da dialética e uma delas interessa de perto à nova retórica, que é a análise dialética da realidade e seu reflexo no espelho da mente, a dialética do geral para o particular, das categorias de pensamento como estágios de compreensão e domínio do mundo. O debate retórico é o meio de se aproximar da verdade num mundo em que tudo se origina na disputa, pois a guerra é comum a todos e é a base e o princípio de tudo, até mesmo da harmonia e da justiça. A contradição é a alma tanto da dialética como da retórica.
A lei rudimentar do pensamento retórico e dialético não aceita apenas uma análise superficial do objeto em debate, mas busca analisar as contradições mais profundas existentes em sua unidade. Segundo Heráclito, aprender muitas coisas não nos ensina a ter entendimento, muitos não pensam sobre as coisas que experimentam, nem sabem aquilo que aprendem, mas acham que sabem. Estamos enganados quando acreditamos em nossos sentidos e nos enganamos quando desconfiamos deles sem crítica, porque a natureza adora esconder e não revela facilmente seus segredos.
A dialética é um método que sustenta que fenômenos externos ocultam leis internas e essenciais. A retórica é o instrumento que desnuda a essência de suas formas equivocadas. E qual é a essência? Segundo a dialética, a essência são as contradições e expô-las aos ouvintes, o que pode ser estendido ao infinito. Todavia, o objetivo do diálogo retórico não é simplesmente estabelecer uma discussão infinita e brilhante, mas chegar a escolhas e decisões razoáveis. Por causa desses objetivos práticos, o diálogo retórico precisa impor restrições temporárias à essência dialética infinita e ao seu caráter multifacetado; e recomenda a aceitação de resultados preliminares, além de aprovar as aplicações práticas.
A grande novidade na teoria de Perelman, com relação à Aristóteles, é sua apresentação e elaboração da noção de audiência e pluralismo, seja na política, jurisprudência ou filosofia. Uma das inconsistências que a nova retórica pretende diminuir é o fato de que todo sistema normativo ser arbitrário e logicamente indeterminado. Perelman chegou a conclusão de que há uma imperfeição natural em todas as formas de sociedade, e se convenceu de que o diálogo seria a maneira pela qual a pluralidade das mentes imperfeitas atuam. O diálogo, concebido como interrelação entre o orador e a audiência, foi introduzido pela nova teoria da argumentação a partir de considerações pluralista e tornou-se um foco central da Nova retórica.
O problema político e filosófico central é que no meio social enfrentamos conflitos, e o mais difícil e essencial é a busca de meios para minimizar esses conflitos e equilibrar os antagonismos por meio de uma técnica social centrada na noção de convenção, que é o resultado do acordo entre pensamentos que estabelecem livremente uma ordem comum.
O pluralismo sempre busca o aprimoramento por meio de concessões, acomodação e síntese, e parte da premissa de que os indivíduos não devem levar seus interesses e convicções longe demais, eles devem ser moderados e prudentes. As pessoas podem viver juntas em equilíbrio, numa simbiose, cada uma buscando um modo de vida aceitável por todos, e todos os indivíduos podem preservar uma certa dose de liberdade e individualidade.
Duprèel, professor que inspirou Perelman, distinguiu o espírito crítico do espírito dogmático, sendo este caracterizado pela inclinação para rejeitar qualquer crítica ou questionamento, o que serve a propósitos de grupos conservadores, enquanto que aquele, o crítico, é a disposição para respeitar todas as verdades conhecidas ou a serem descobertas.
Concluindo, o conceito pluralista de sociedade política assimilado por Perelman é um conjunto de conclusões lógicas, racionalistas e razoáveis, baseadas no conceito dialético da disputa perene de contradições.
O diálogo é a forma e o ânimo de espírito do processo da argumentação. Há dois pré-requisitos para a existência do diálogo: o interesse do orador e da audiência na troca de ideias, e a liberdade dos participantes de serem sinceros uns com os outros, sem medo de expor o que pensam.
Num processo de persuasão, o ponto de partida não deve ser o indivíduo, mas sim o meio cultural em que ele está imerso. O orador deve mergulhar nesse mundo em busca de elementos comuns para edificar sua argumentação.
A retórica, contudo, não é a arte de utilizar meios imorais para fins imorais, eis que, considerando uma audiência universal, durante o fluxo da argumentação, as pessoas de livre pensamento logo detectarão os mentirosos e as falsidades tão necessárias para os desonestos. Não há garantia contra o erro, mas este será descoberto quando o interlocutor estiver livre para pensar, falar, coletar material e investigar o caso, quando ele estiver livre e preparado para fazer parte do processo da argumentação. A nova retórica deve ser uma arte de persuasão, com o fim de obter a adesão de pessoas comuns, que podem não ser anjos, mas que também não são demônios, e que, pelo menos, têm a boa vontade de começar a pensar sobre determinado assunto.
No século XX o senso comum deixou de ser um instrumento contra distrações do próprio senso comum por ter sido erigido a uma categoria da lógica e servir às nefastas propagandas dos poderosos, sendo um dos piores e mais perigosos inimigos da razão nas democracias industriais modernas. A retórica é uma maneira de sobrepujar o poder das aparências, dos dogmas, dos mitos e das "verdades óbvias" do senso comum, sendo um convite ao diálogo de pessoas que são críticas, inovadoras e criativas em suas vidas profissionais, mas que são incapazes de aplicar os mesmos critérios de exigência em análises de assuntos políticos e sociais. A lógica formal não questiona as premissas, mas sim aceita conceitos tradicionais mesmo que novas circunstâncias já os tenham invalidado. Já a retórica examina todas as coisas.
Os fatos e a verdade são duas ideias muito importantes para entender a relação entre a nova retórica e o pluralismo. Segundo Hegel, a verdade é infinita, eis que concebida como um processo dialético de reflexão sobre a objetividade, realizado pela mente subjetiva, pelo que impor limites à verdade seria negá-la. Assim, toda verdade é somente parcial. Mas a verdade parcial é sempre verdade, pois abrange parte da verdade absoluta, que a humanidade apenas alcançará na eternidade. O estágio determinado do conhecimento humano envolve uma soma de verdades objetivas parciais e esse conhecimento pode ser fundamental para atividades práticas. O avanço na descoberta e domínio dessas verdades parciais é a própria evolução do pensamento, a qual consiste em novas descobertas das leis desconhecidas da natureza, de associações, relações e interdependências desconhecidas. Todavia, é bom ressaltar, nem toda verdade relativa nos leva a uma verdade superior, sendo este o verdadeiro perigo a que toda verdade relativa nos expõe. Aqui entra a nova retórica, que procura diminuir o risco real de erros.
Já os fatos são certos tipos de dados baseados na realidade objetiva, eles designam o que foi acordado como incontroverso por uma determinada audiência. Todavia, nenhuma afirmação pode estar segura de gozar definitivamente desse status. Não há nenhum critério derradeiro que torne algo um fato independente da atitude do ouvinte, posto que só se tornam fatos no processo da argumentação quando são aceitos e tratados como tal. Um fato que é alvo de argumentação nada mais é do que uma reflexão subjetiva da realidade objetiva, desde que não seja impugnado pela contra argumentação de seus adversários.
Fatos x Verdades: o termo fatos geralmente é usado para designar objetos de acordo preciso e limitado, enquanto o termo verdade é geralmente empregado em sistemas mais complexos relacionados a conexões entre os fatos. A verdade está relacionada com a "realidade objetiva", com sua avaliação, com sua percepção, e finalmente com a atividade prática que dialeticamente influencia na realidade. A teoria da argumentação, com seu conceito discursivo de fatos e verdades, é inteiramente dialética: não sustenta nada sagrado, nada estabelecido, nada tido como certo. E a dialética, por sua vez, pede um diálogo retórico porque essa é a única maneira de preservar sua existência. A dialética e a retórica representam os dois lados do método democrático de pesquisa num ambiente politicamente livre, ambos necessitam da democracia política, assim como a democracia política não pode existir e se desenvolver sem eles.
A cultura ocidental geralmente sustenta que qualquer conclusão alcançada pelo pensamento humano deve ser uma convicção subjetiva e pessoal, além de que toda conclusão deve ser examinada e resultar de uma investigação, não apenas de uma crença cega, o que também é o ideal do discurso retórico. A argumentação retórica nunca termina, ela não conhece interrupções, pausas ou intervalos. Toda verdade é continuamente questionada numa busca por contradições e harmonia.
A ligação intrínseca entre a metodologia retórica, a dialética e o pluralismo é a premissa de que não existe nada perfeito, sendo que a nova retórica constitui uma base filosófica e metodológica para o pluralismo. É um instrumento de análise e síntese, sendo uma criativa atividade social.
A nova retórica não considera todos os ideais filosóficos, legais, sociais, políticos e morais sem sentido ou sem valor. Apenas submete esses ideais, sua interpretação e sua aplicação à pesquisa científica incessante. cada vez mais estamos desenvolvendo a capacidade de encontrar uma terceira, quarta ou quinta solução, porque nossas vidas e nosso sistema social e político não estão confinados a apenas dois extremos. O método da nova retórica é contra o dogmatismo mas sim é a favor do pluralismo, da democracia e da liberdade intelectual ilimitada.
Pela sua própria natureza, a dialética é crítica e revolucionária, mas a experiência mostra que até mesmo a dialética pode ser usada para fins não humanistas e antiprogressistas, pois ela não tem sido usada apenas como arma da crítica, mas também como meio de impor ideais absolutos e dogmas, muitas vezes de forma oculta e perversa, pois apresentam, na prática, uma forma mais amena de ideias absolutas. A nova retórica, ao contrário, sustenta que as decisões devem ser tomadas com base em premissas retoricamente aceitas, nos fatos e nas verdades, e todas as coisas relacionadas a eles devem ser passíveis de debates em todos os estágios.
A concessão por si própria é um resultado da sociedade pluralista e ajudam a promover o desenvolvimento das instituições democráticas, na medida em que são resultados inevitáveis do completo desmembramento dos fatos e argumentos que circundaram a questão. No campo das contradições, da pesquisa e dos argumentos deve haver um acordo sobre as proposições fundamentais, ao menos isso.
Concluindo, sendo uma teoria e metodologia, a nova retórica funciona como um instrumento realista para suprir a lacuna entre o pensamento dialético e a atividade prática na sociedade moderna.

4 - A visão retórica do poder e da autoridade
A distinção entre autoridade e poder não é geralmente aceita no campo das ciências políticas. Todavia, trata-se de importante diferenciação para a teoria da nova retórica. Autoridade é o que autoriza, enquanto o poder é o que capacita. Portanto, na autoridade há elementos de moralidade que não existem necessariamente no poder, estando este ligado à dominação, enquanto a autoridade se baseia na superioridade moral. O poder exercido sem autoridade está nas mãos de bandidos e de tiranos. Santo Agostinho afirmou que o poder supremo não controlado pela justiça nada mais é do que summa latrocinia (roubo entronado). Todo poder sem autoridade é injusto e separar o poder da autoridade é como separar a força da justiça. A autoridade sempre tem aspectos normativos e o poder sem autoridade leva o indivíduo à submissão e não ao respeito.
A nova retórica, portanto, é mencionada por ele como um instrumento que somente deve ser usado mediante poderes democraticamente constituídos responsáveis pela direção humana e progressiva de uma comunidade política organizada, pois a força não pode e não deve ser o único e verdadeiro motivo de obediência. Todo poder deve tentar agir como autoridade e ser considerado uma autoridade. isso significa que ele deve gozar de respeito, mas o respeito não vem por si próprio, ele deve ser conquistado. E é aí que entra a nova retórica, como o seu papel de conquistar ou ampliar a adesão de opiniões aos argumentos do locutor e, dessa forma, exercer uma influência significativa sobre a política e sobre a evolução democrática. Contudo, ela não pode servir como meio para obter a adesão ao autoritarismo insensato, baseado no poder físico, que somente consegue atrair o povo com base na intimidação.
Para Perelman, tão logo o poder torne-se mera expressão de uma relação de forças, uma força revolucionária que sirva a interesses antagônicos pode contrapor-se imediatamente a ele, para defender uma nova ordem, que será mais justa e humana, que salvará o homem de todas as suas formas de alienação e devolver-lhe-á a sua liberdade perdida. Vislumbra-se aqui o papel político da Nova Retórica, eis que se trata de um instrumento capaz de auxiliar na elaboração de uma nova ideologia mais compatível com a dignidade humana e a liberdade, e que pode dessa forma ganhar e aumentar a adesão da maioria. Esse é o ciclo do desenvolvimento social e político e não importa se os diversos estágios desse desenvolvimento sejam chamados de revolução ou reformas, cujo melhor exemplo é a morte relativamente pacífica do comunismo na Europa Oriental.
Concluindo, uma crítica da ideologia dominante pode ser feita somente por outra ideologia, sendo que esse conflito de ideologias constitui a base de nossa vida espiritual contemporânea. Negar o conflito entre as ideologias é nutrir o dogmatismo e a ortodoxia e permitir ao poder político dominar o universo do pensamento.

5 - O Curso da Argumentação
Os primeiros objetivos no processo do discurso devem ser estabelecer as ideias essenciais do interlocutor e descobrir seus objetivos verdadeiros. Quando entramos numa discussão com alguém que expressa ideias aparentemente desconexas, que parecem ser ilógicas e filosoficamente incoerentes, devemos estabelecer o verdadeiro senso lógico e as bases que sustentam as palavras dessa pessoa, a tal ponto que talvez ela mesma não compreenda claramente.
O orador deve sempre ter em mente que o conservadorismo é mais poderoso que as ideias inovadoras, eis que defendem algo que já existe, e segundo Hegel, tudo que existe é razoável.
O objetivo do diálogo retórico e do processo da argumentação não é encontrar um meio termo ou dividir as diferenças. O objetivo é, se possível, conseguir o apoio de toda a audiência aos nossos argumentos ou, pelo menos, ganhar seguidores para nossa causa apresentada e justificada. O diálogo retórico não é um processo de negociação.
A identificação do centro como uma posição de meio termo deve ser cuidadosamente analisada para que tenha certeza que o tal centro é de fato o centro. A posição centrista pode ser útil e razoável, mas sua racionalidade deve ser provada não apenas com base na conveniência transitória, nos benefícios pragmáticos temporários ou na conveniência linguística.
Para a nova retórica, o objetivos do diálogo é ganhar a adesão da audiência, a fim de perseguir nossos objetivos práticos. O termos adesão é importante para a compreensão do conceito sustentado pela nova retórica. Dizer que um orador provocou a adesão da audiência, não significa dizer que ela mudou necessariamente sua filosofia, ideologia, religião, ou qualquer outra opinião; mas significa que ela deve cooperar com o orador num futuro próximo e previsível, a fim de atingir certos objetivos comuns estritamente definidos.
No processo de obtenção da adesão, além do espírito e atitude geral da audiência, devemos levar em conta também seus sentimentos complexos, combinados e até contraditórios. Tanto que os grandes líderes de qualquer país são criados pelos acontecimentos à imagem do seu próprio povo, suas verdadeiras características e desejos.
Para Perelman, ideias vagas podem contribuir para o desenvolvimento da sociedade. Tais ideias materializam-se na posição centrista, que mesmo sendo possivelmente confusa e vaga, pode representar um plano ou projeto realizável. Pode ainda ser utilizada para ganhar tempo, até que decisões mais razoáveis e esclarecidas possam ser tomadas. Para Hegel, a história deve se repetir duas vezes, o primeiro movimento para o progresso evolutivo será seguido por um segundo movimento, com a finalidade de convencer as pessoas de que o advento dos novos tempos é inevitável e que eles não devem lamentar o final da primeira fase.
É fato que, sem maior participação social ativa no processo político, o sistema democrático ficará enfraquecido e poderá decair, eis que o principal critério para determinar se um sistema democrático funciona normal e eficazmente é a participação consciente do público no processo da tomada de decisões políticas. Do ponto de vista retórico, o público deve aderir razoavelmente a certas ideias e decidir frente a um conjunto de alternativas, mas deve, todavia, sentir-se livre para mudar de opinião sempre que achar que a situação e as circunstâncias tenham se modificado. A nova retórica lastreia essa atividade prática, que exige fazer escolhas e vencer obstáculos, porém nunca teve a intenção de ser um mero sistema metodológico e filosófico, mas de ser um instrumento que promova a atividade razoável e prática à luz da razão.
A nova retórica, além disso, busca lastro em valores, princípios ou normas que tenham a vantagem de não terem que ser justificados, não porque sejam autoexplicativos, mas simplesmente porque não são contestados. Tais normas podem ser objeto de um acordo geral. Todavia, tal acordo geral não deve vincular os participantes do debate, principalmente se passarmos a discussão do plano abstrato para o concreto, o que é uma regra intelectual e social básica.
O novo dilema de Caim: Após a década de 1950, o debate sobre a responsabilidade do indivíduo sobre seu próximo ganhou relevo, principalmente em temas como a proteção ao meio ambiente e energia nuclear, mesmo que a esfera de ação sejam além das fronteiras nacionais, eis que estão em jogo a saúde, a vida e o bem-estar da humanidade. Estamos entrando lentamente numa fase em que o controle das pessoas mais esclarecidas sobre aqueles moralmente deficientes tornou-se necessária. Todos nós estamos interessados em assegurar governos democráticos em todos os países do mundo. Tal preocupação não deve ser considerada uma tentativa de interferir nos assuntos internos de um país, mas um ato de autodefesa por parte das nações e de toda a humanidade.
Os imperativos de Kant, o cristianismo judaico e os preceitos humanistas de moral ainda são válidos. Quando se tem amor ao próximo, deve-se ajudá-lo a ficar livre da ameaça de ditadores irresponsáveis. Com o intuito de salvar as nações e a humanidade do desastre, devemos empregar novos processos de pensamentos e de discussão, um método de argumentação e persuasão novos, essa é a filosofia e a metodologia da nova retórica: não podemos deixar nem mesmo uma só pedra de crenças tradicionais intocadas.

6 - Política, lei e Moral - Uma nova fase.
Há um cinismo crescente no mundo no que diz respeito à relação entre moral e política, eis que o povo está convencido de que essa ligação foi rompida, haja vista os políticos parecerem se importar cada vez menos com os padrões morais. As pessoas acham que questões morais não podem ser discutidas de uma forma verdadeiramente acadêmica, pois estariam além da razão, e seriam arbitrárias e baseadas num sistema de valores a priori.
Apesar disso, uma série de leis humanitárias estão sendo postas no mundo no sentido de positivar determinados preceitos morais. Como consequência, podemos perceber uma estreita interdependência entre política e moral, contrariando a sabedoria popular.
O Jogo político está estabelecido em duas dimensões. A primeira refere-se a grande questão da orientação política e a direção fundamental do desenvolvimento social e econômico, e são questões de suma importância pois têm o condão de influenciar drasticamente o futuro das gerações. A segunda dimensão está relacionada com as lutas políticas do dia dia, por posição, honrarias, lideranças, e votos. É onde vigora as intrigas, mentiras, meias verdades e todas as outras armas moralmente reprováveis, mas largamente utilizadas pelos políticos, em busca do sucesso. Até então, decisões corretas e eficazes ma primeira dimensão faziam os deslizes da segunda caírem no esquecimento. Atualmente, tudo se torna muito mais complexo porque há uma ligação direta com relação à moral entre o segundo e o primeiro tipo de política. Não se consegue definir com precisão o que seria um grande governo, nem uma péssima decisão. O curso dos acontecimentos impôs novas exigências na moral de decisões políticas, a exemplo do princípio da moralidade no direito administrativo brasileiro.
Atualmente, é cediço que apesar da vontade subjetiva de determinados políticos, eles são obrigados a tomar decisões compatíveis com as exigências amplamente compreendidas da moral. A necessidade de pelo menos aparentar um comportamento moral na política nesta época de comunicação de massa torna-se cada vez mais incontestável.
Contudo, a extensão dos efeitos das transgressões morais dentro da política, depende da percepção de cada sociedade, que pode mandar prender o político corrupto ou simplesmente deixá-lo impune.
Eis a essência da nova relação entre a política e a moral: a falta de vigor moral leva ao detrimento político, não a sua queda. Quando os atos não correspondem aos padrões de moral, a condenação nacional e internacional logo se segue. Esse princípio está se tornando gradualmente uma regra de ouro das relações políticas e da moral e sua observação é necessária para o sucesso na política.
O fato de que as normas morais têm uma natureza bastante genérica é uma das razões pela qual alguns filósofos e lógicos sustentam que as normas morais devem ser arbitrárias e que não podem existir princípios morais de base científica ou diretivas razoáveis de comportamento moral. Todavia, com base nos novos preceitos do direito nacional e internacional aceitos em todo o mundo, são importantes as atividades e normas que objetivem a felicidade máxima do indivíduo, com proteção à vida e à saúde da sociedade acima de tudo; a proteção à privacidade individual, à liberdade, e à tolerância; a proteção aos direitos humanos definidos pelo conjunto de tratados internacionais; a luta internacional ativa contra criminosos e crimes contra a humanidade.
Esses princípios morais devem ser considerados como o resultado do desenvolvimento de todo o curso da nossa civilização no ocidente, de nossa filosofia e jurisprudência, da atividade governamental, dos legisladores regionais e do direito internacional. O reconhecimento das normas e sensibilidades morais nos leva à legislação moderna nacional e internacional, que não aceitam que governos praticantes de genocídio se escondam atrás do muro da soberania.
Um dos conceitos básicos da moral grega e judaico-cristã deve ser revisado: o das boas intenções subjetivas, ou o da boa vontade kantiana, pois não são critérios suficientes da moral. Por exemplo, a defesa de criminosos de guerra que agiram por ordem superior ou de boa fé não é aceita por si própria. O grande avanço nas relações entre a moral, a política e a jurisprudência foi, por exemplo, a possibilidade de haver crime de genocídio por omissão, caracterizando uma das novas responsabilidades morais que permearão o mundo moderno. Assim, as normas morais se apresentam menos genéricas e ambíguas, mais precisas, mais diretas, mais concretas e mais fáceis de ser aplicadas.
Concluindo, já que é impossível fugir de dilemas morais e políticos, devemos utilizar o poder do pensamento e da argumentação para resolvê-los da maneira mais humana e racional possível. A nova retórica existe para aprimorar a compreensão de escolhas.

7 - Leis Sociológicas
No final do século XIX, os pensadores alemães sustentavam que existiriam dois tipos de ciência: as naturais e as sócio-históricas. As naturais descobrem leis naturais e generalizam os fatos empíricos pesquisando e encontrando uniformidade. As ciências históricas, por seu turno, não podem generalizar fatos históricos sociais ou políticos, pois se interessam por fatos específicos e concretos, que nunca poderão ser duplicados, pelos que são imprevisíveis. Segundo esses cientistas, o estudo da história apenas serve para acumularmos conhecimento, que, ao final, não nos ensinará nada, pois não vamos poder utilizá-los na tomada de decisões que envolvam novos fatos.
Perelman rejeitou essa distinção. Ele acreditava que nos dois tipos de ciência devemos estudar fenômenos que se repetem e encontrar estruturas e regularidades semelhantes que nos permitam considerá-las como padrões de um tipo de fenômeno. Sendo que os historiadores buscam generalidades no curso dos acontecimentos. Eles limitam suas investigações àqueles elementos, acontecimentos ou aspectos que, de acordo com sua escala de valores, possam ser considerados significativos e dignos de serem considerados fatos históricos, porque eles estão convencidos de que os futuros políticos, ativistas sociais e filósofos aprenderão algo se os conhecerem. Todavia, pode, e deve, haver discordância entre o que seria ou não um fato importante. O agrupamento dos fatos históricos em categorias nos permite prever o curso dos acontecimentos e avaliar o planejamento político e a programação social. Os historiadores fazem exatamente o que uma pessoa inteligente de bom senso faria. Eles partem de fenômenos específicos que ocorreram em determinado momento e tentam estabelecer os traços característicos de um dado período histórico. Para Perelman, as categorias históricas nos permitem organizar o conhecimento histórico.
Após o colapso do comunismo e no final da guerra fria, as pessoas continuam vivendo num mundo de velhos demônios e contradições, pois foram incapazes de lidar crítica e realisticamente com a nova situação. A nova retórica, desde o início, tentou persuadir as pessoas a não tomar posições extremas na análise das situações hostis. A ideia geral da nova retórica é considerar os elementos razoáveis presentes em todas as ideologias.

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