terça-feira, 13 de outubro de 2015

Lições de Pasárgada ao novo CPC



Andrei Cesário de Lima Albuquerque
Acadêmico de Direito, UNIFESSPA
andreicesario@gmail.com
em 29/06/2015

Em sua tese de doutoramento "O direito dos oprimidos", Boaventura de Sousa Santos apresenta um estudo de caso dos mecanismos de prevenção e resolução de conflitos em uma comunidade do Rio de Janeiro no início dos anos 1970. Neste seu trabalho de campo, o jusfilósofo português nos apresenta o uso de um direito na favela do Jacarezinho diverso daquele positivado pelo estado. Em "Pasárgada", nome fictício dado pelo autor para descaracterizar a comunidade em tempos de ditadura militar no Brasil, praticava-se um direito muito mais ético e menos formal. Que lições o direito processual e o próprio judiciário poderiam aprender com esse "direito"?
O ideário juspositivista nos legou um direito moldado pelo formalismo e por um raciocínio pretensamente apodítico. As consequências políticas e, principalmente, sociais desse modelo, verificadas ao longo do século XX, deixam claro que o direito estatal, pensado para o mundo moderno e maquínico, chega em crise à sociedade pós-moderna e complexa. Superar o positivismo tornou-se necessário, mas igualmente desafiador.
Inspirados pelas notáveis conquistas das ciências naturais, que conseguiram melhorar o nível de conforto da humanidade (ou pelo menos da parte dela que poderia pagar por isso), os juristas do século XIX buscaram incorporar as certezas lógicas e incontestáveis, obtidas com o raciocínio apodítico, à forma de operacionalizar o direito. A letra da lei era sempre a premissa maior de um silogismo que tinha o caso concreto como um dado secundário (premissa menor). Da subsunção do fato à norma, nasceria a decisão para a questão, ou seja, brotaria dali a "justiça".
Apesar do modelo acima aplicar-se perfeitamente às ciências lógicas e naturais como a matemática, a física e a química, quando transplantado ampla e irrestritamente para disciplinas que se propõem a estudar o homem em sociedade e as normas que regem a sua conduta, tais como a sociologia, a moral e o direito, ele se mostra deveras danoso à busca de uma justa solução para um litígio.
Nesse sentido, o positivismo jurídico deixa claro que a sua preocupação com a segurança e com a estabilidade das relações sobrepõe-se aos esforços de se chegar a uma decisão mais razoável e adequada. Daí porque opta por uma forma de raciocínio que produziria resultados em série para conflitos nem tão semelhantes assim. O jurista positivista abomina a pós-modernidade e seus conflitos complexos e individualizados, para os quais a lei não oferece uma resposta pronta e acabada.
A inadequação "positivismo x pós-modernidade" fez nascer as escolas denominadas "pós-positivistas" e o modelo pautado nas regras e na lógica começou a ruir para dar lugar a outras manifestações normativas, a exemplo dos princípios. Analisaremos aqui alguns dos aspectos dessas mudanças a partir do direito processual civil, ramo de especialização do direito em que, tradicionalmente, as regras cumpriam o papel básico, mas que hoje caminha para um crescente pluralismo decisório. 
O novo código de processo civil pretende ritualizar as formas alternativas de resolução dos conflitos. A exemplo do que já ocorre na Justiça do Trabalho, a primeira providência do Juiz de Direito diante de um litígio processado pelo novo código será a instigação das partes a buscarem uma solução amigável para a questão, através da audiência prévia de conciliação. Veja-se o art. 334:
Art. 334.  Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
Não há dúvidas de que uma solução construída pelas partes por meio do diálogo terá um grau de adesão muito maior do que aquela imposta verticalmente pelo magistrado. Daí porque a solução
Além disso, às partes foi reconhecido o direito de celebrarem negócios processuais sobre os mais variados temas, não mais estando restritas às hipóteses expressamente previstas em lei. Essa descentralização, que Fredie Didier vem denominando de "negócios processuais atípicos", está autorizada pelo art. 190, do Novo CPC:
Art. 190.  Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Tratam-se verdadeiros acordos de vontade celebrados pelas partes sobre como a marcha processual caminhará. Imagine-se o incremento de legitimidade que o processo recebe quando ele próprio passa a ser construído pelas partes! Didier vai dizer que essa inovação veio para deixar o processo menos prêt-à-porter, transformando-o em uma verdadeira peça de alfaiataria, sob encomenda. Nada mais pós-moderno e adequado para atender a uma sociedade cada vez mais complexa.
O novo código de ritos também é o responsável por reforçar a normatividade dos princípios, hipótese, contudo, já há muito admitida pela doutrina e pela jurisprudência. Veja-se o art. 8º:
"Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência".
O código anterior falava em "normas legais", expressão que foi felizmente substituída por "ordenamento jurídico" (art. 126), eis que esta contempla tanto as regras quanto os princípios. Ao contrário das regras, os princípios são estruturas de textura aberta, com conteúdo a priori indeterminado, mas que se desnuda na análise do caso concreto. Um ordenamento jurídico com menos regras e com mais princípios é certamente um sistema mais pós-moderno, com recursos e ferramentas mais eficazes para resolver a enorme gama de tipos de conflitos decorrentes da complexidade. 
Bom destacar que o novo rito processual também busca ser mais efetivo e eficaz, seja por meio da autocomposição, seja pela manifestação direta da jurisdição estatal. É um processo em que ficou mais fácil realizar a justiça, mas o preço para isso foi a perda de uma parcela da previsibilidade e, por conseguinte, da segurança que existia nas regras rígidas e irreleváveis de outrora. Como lidar com isso?
Desde suas primeiras linhas, o pós-positivismo vem obrigando os juristas a teorizarem sobre essa mitigação da segurança jurídica e sobre como lidar com ela dentro de um sistema jurídico que (ainda) serve à economia de mercado e aos seus cálculos atuariais e utilitaristas. Sensível a isso, a nova ordem processual também cria e remodela mecanismos de previsibilidade e segurança.
No caso do novo CPC, juntamente com a liberdade para valorar e aplicar todo o ordenamento jurídico aos casos concretos, veio para os tribunais o dever de uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Veja-se o que diz os arts. 926 e 927: 
Art. 926.  Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Art. 927.  Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
(...)
Em uma primeira análise, essa vinculação aos tribunais ad quem parece ferir de morte o dogma do livre convencimento do magistrado (a expressão "livre" nessa sentença foi, inclusive, suprimida no novo código). O desenrolar das decisões após a entrada em vigor do novo código é que vai mostrar o quão dispostos estarão os nossos juízes, principalmente os de primeiro grau, a mitigar os poderes de sua investidura, decidindo por "disciplina judiciária".
Não obstante, a nova sistemática conferirá em certa medida uma carga maior de legitimidade democrática às decisões proferidas pelo judiciário, pois privilegia o entendimento dos tribunais políticos, daqueles em que seus membros decidem de forma colegiada e são escolhidos/indicados pelos poderes eleitos pelo voto.
Em suma, a partir de Pasárgada, estamos buscando construir um direito mais indulgente no formalismo, mas severo no conteúdo ético.



Referências:

ANDRÉA. Fernando de. Robert Alexy: introdução crítica. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

BRASIL. Lei 13.105/2015. Código de processo civil. Disponível em www.presidencia.gov.br. Acesso em jun. 15.

DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. Salvador: Jus Podivum, 2015.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O direito dos oprimidos. São Paulo: Cortez, 2014.

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